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Blog de Contencioso Administrativo


Domingo, 20.10.13

A judicialização do poder

“Collectivism is indifferent to all elements of our freedom and the enemy of some. But the real antithesis of a free manner of living, as we know it, is syndicalism. Indeed, syndicalism is not only destructive of freedom; it is destructive, also, of any kind of orderly existence. It rejects both the concentration of overwhelming power in the government (by means of which a collectivist society if always being rescued from the chaos it encourages), and it rejects the wide dispersion of power which is the basis of freedom. (…) The great concentrations of power in a syndicalist society are the sellers of labour organized in functional monopoly associations. (…) In the first place, labour monopolies have shown themselves more capable than enterprise monopolies of attaining really great power, economic, political and even military. Their appetite for power is insatiable and, producing nothing, they encounter none of the productional diseconomies of undue size. Once grown large, they are exceedingly difficult to dissipate and impossible to control. Appearing to spring from the lawful exercise of the right of voluntary association (though as monopolistic associations they are really a denial of that right), they win legal immunities and they enjoy popular support however scandalous their activity.” 1

  

Foi aprovada pela maioria parlamentar (PSD e CDS-PP), no final da sessão legislativa, a 29 de Julho, uma proposta de lei que procedeu à alteração do período de trabalho dos funcionários públicos para 40 horas semanais, sendo considerada, por alguns, como mais uma etapa no caminho de convergência entre o sector público e o privado que tem vindo a ser percorrido pelo actual Governo.

 

De acordo com o site da Assembleia da República, o diploma foi promulgado a 22 de Agosto pelo Presidente da República e seguiu para publicação em Diário da República, a 29 de Agosto, data que precede imediatamente o início da contagem do prazo para a sua entrada em vigor, 30 dias depois.

 

Apesar de ter sido aprovado em votação final global com votos da maioria PSD/CDS-PP, esta proposta de lei teve contra ela toda a oposição, certamente expectante que Cavaco Silva vetasse a iniciativa do Governo ou a enviasse para o Tribunal Constitucional para que este se pronunciasse em sede de fiscalização preventiva, o que não chegou a acontecer no prazo de 8 dias de que o Presidente da República dispõe para o efeito.

 

Perante este cenário, o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) anunciou, a 2 de Setembro, a apresentação de uma providência cautelar contra o aumento do horário de trabalho de 35h para 40h semanais na função pública, convicto quanto à manifesta inconstitucionalidade desta alteração.

  

Em comunicado, o STI refere que, entre outros motivos, pretende "tentar impedir a entrada em vigor desta lei", por estar convicto da sua inconstitucionalidade devido a uma "violação clara" da alínea d) do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, que indica que “todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito (...) ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas". Está também em causa a redução dos salários em 13% através do aumento da carga horária e de um não aumento salarial (uma diminuição da remuneração horária, no fundo), que o presidente do STI, Paulo Ralho, considera inaceitável.

 

A providência cautelar sub judice deu entrada no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, no dia seguinte à emissão do comunicado pelo STI, a 3 de Setembro, pelas 15:00.

 

Dia 23 de Setembro, o STI foi notificado da aceitação da providência que requereu junto do TAC de Lisboa, tendo esta um efeito de suspensão imediata (vide artigo 128º/1 CPTA) relativo ao alargamento do expediente da função pública, até pronúncia definitiva do TC sobre a matéria. A partir dessa data, o Ministério das Finanças dispunha de 10 dias para rebater os argumentos do STI, apesar de, até lá, os cerca de 9.000 sócios dos sindicatos ficarem imunes ao novo regime. Todavia, o Governo tem à sua disposição um instrumento a que normalmente recorre para evitar que os efeitos da lei fiquem suspensos: a resolução fundamentada de interesse público, que, como referimos, tem a capacidade de anular o efeito suspensivo da providência cautelar até que o juiz profira uma sentença.

 

A 26 de Setembro, o Ministério das Finanças invocou o interesse público para eliminar o efeito suspensivo da providência cautelar requerida pelo STI, como era expectável, tendo sido os argumentos aceites pelo TAC de Lisboa. O STI prepara, no presente momento, a contestação.

  

Esta é a realidade fáctica. Cumpre agora analisá-la à luz daquilo que é o regime vigente em sede de contencioso administrativo, nomeadamente no que diz respeito ao âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos.

 

Os tribunais administrativos, as entidades onde são apresentadas as providências cautelares, servem, inter alia, o propósito de verificar se os actos que se encontram hierarquicamente abaixo das leis (actos e regulamentos administrativos) estão em conformidade com elas. Apenas o Tribunal Constitucional tem competência para pôr em causa uma lei aprovada no Parlamento.

 

No caso que agora nos ocupa, não havendo pronúncia do Tribunal Constitucional relativa à putativa inconstitucionalidade das normas do diploma, parece-nos que o requerimento de uma providência cautelar por parte do STI, que tem como efeito a interrupção do processo, para querer suspender a aplicação de uma lei e cujo objectivo último é a anulação do efeito dessa mesma lei consubstancia uma lamentável forma de causar embaraço ao Executivo. Desacertada parece-nos ainda a aceitação desta mesma providência por parte do TAC de Lisboa, uma vez que os Tribunais Administrativos não têm jurisdição para suspender leis (vide artigo 4/2ª) ETAF) nem para as anular. Apenas o poderão fazer se as mesmas contiverem, de modo dissimulado, actos ou regulamentos administrativos, como atrás referimos, o que não é aqui, evidentemente, o caso. Não é despiciente, a propósito, relembrar que os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir no exercício das suas funções com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.

 

Perfilhamos, portanto, a posição a este respeito aduzida, na SIC N, pelo Dr. Tiago Duarte, Professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que considera que, pelos motivos assinalados supra, o TAC de Lisboa tinha motivos para rejeição liminar da providência, nos termos do artigo 116/2 d) do CPTA.

 

Notamos ainda que esta situação, além de lamentável, acaba por se revelar embaraçosa para o próprio Tribunal Administrativo, pois entendemos que o motivo para assim ter procedido terá resultado, em larga medida, da pressão e do poder detido pelos sindicatos, que têm, por definição, como único fito os seus interesses e que acabam por infligir à restante comunidade os prejuízos decorrentes da sua acção. Ora, o sucumbir de um tribunal, um órgão de soberania com competência para a administração da justiça, a métodos suasivos de uma associação sindical, ao arrepio da sua independência, gizada no artigo 203º CRP e, ademais, conquistada a muito custo na “fase do crisma e da confirmação”, na terminologia do Professor Vasco Pereira da Silva, bem como da sua subordinação à lei, afigura-se-nos consubstanciar uma aura de promiscuidade.

 

 A este propósito, parecem-nos insignes os seguintes trechos, que passamos a citar:


“Public policy concerning labor unions has, in little more than a century, moved from one extreme to the other. From a state in which little the unions could do was legal if they were not prohibited altogether, we have now reached a state where they have become uniquely privileged institutions to which the general rules of law do not apply. They have become the only important instance in which governments signally fail in their prime - function the prevention of coercion and violence. (…) Everywhere the legalization of unions was interpreted as a legalization of their main purpose and as recognition of their right to do whatever seemed necessary to achieve this purpose -namely, monopoly. More and more they came to be treated not as a group which was pursuing a legitimate selfish aim and which, like every other interest, must be kept in check by, competing interests possessed of equal rights, but as a group whose aim - the exhaustive and comprehensive organization of all labor - must be supported for the good of the public. (…) In particular, because striking has been accepted as a legitimate weapon of unions, it has come to be believed that they must be allowed to do whatever seems necessary to make a strike successful. In general, the legalization of unions has come to mean that whatever methods they regard as indispensable for their purposes are also to be treated as legal. (…) Though it may be impossible to protect the individual against all union coercion so long as general opinion regards it as legitimate, most students of the subject agree that comparatively few and, as they may seem at first, minor changes in law and jurisdiction would suffice to produce far-reaching and probably decisive changes in the existing situation. The mere withdrawal of the special privileges either explicitly granted to the unions or arrogated by them with the toleration of the courts would seem enough to deprive them of the more serious coercive powers which they now exercise and to channel their legitimate selfish interests so that they would be socially beneficial.” 2

 

Cabe-nos também acrescentar um último, mas não menos importante, apontamento, este relativo à actuação dos magistrados. Os juízes encontram-se sujeitos ao princípio da imparcialidade, um princípio fundamental e norteador de toda a actuação administrativa. Parece-nos que a sua actuação in casu colide directamente com este princípio. É de apontar, então, a falta de imparcialidade dos juízes que, incrivelmente, protagonizam um choque de competências/jurisdições impróprio num Estado de Direito que se quer saudável.

 

Os factualismos circundantes do caso levam a crer que a aceitação da providência parece motivada por questões políticas e que, atento o basilar princípio da separação de poderes, a situação assim criada representa não só uma gritante intromissão de um poder/função na esfera de competência de outro, como também contribui para uma verdadeira judicialização do poder



1 - Michael Oakeshott, "The political economy of freedom", in Rationalism in Politics and other essays, Indianapolis, Liberty Fund, 1991, p. 401.

2 - Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, Chicago, The University of Chicago Press, 1978, pp. 267-278.

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por Ana Rodrigues Bidarra às 13:16



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