Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blog de Contencioso Administrativo


Domingo, 08.12.13

Breves notas sobre o artigo 121.º do CPTA

  • Introdução

O instituto da convolação da tutela cautelar em tutela definitiva urgente consiste numa inovação trazida pela Reforma do contencioso administrativo, na sendo do princípio da tutela jurisdicional efectiva manifestando-se através da abertura do sistema à concessão de uma tutela adequada a casos (muito) pontuais  carecidos de uma solução urgente definitiva.

De facto, o  legislador reformista criou uma “válvula de escape” para que certas situações jurídicas caracterizadas por uma pontual urgência pudessem ser tratadas de forma adequada e se alcançasse, quanto a estas, uma tutela jurisdicional efectiva, decorrência esta do artigo 268.º n.º4 e 5 da Constituição.  Visa-se garantir, antes de mais,  que não haja demasiadas situações de urgência processual , uma vez que como refere VIEIRA DE ANDRADE “se tudo é urgente, nada é urgente”, devendo contudo cautelar-se as pontuais situações de urgência.

É neste âmbito que foi introduzido o artigo 121.º ao Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos (doravante “CPTA”) o qual permite que, verificados certos  requisitos substantivos e processuais haja uma convolação da tutela cautelar em tutela final urgente, tal traduz-se em antecipar os efeitos de uma sentença de mérito  através do decretamento de uma providência cautelar de natureza antecipatória. Tudo isto em nome de uma tutela jurisdicional efectiva. 

Desta forma, o juízo de mérito sobre a causa principal é proferido no âmbito do processo cautelar, constituindo uma verdadeira transfiguração da decisão cautelar em decisão principal, e não uma prolação antecipada da decisão principal, no processo cautelar[1].  Em consequência, o processo principal do qual o processo cautelar deveria ser instrumental , nos termos gerais das providências cautelares, é agora inútil, por força do caso julgado material da decisão de mérito proferida no âmbito cautelar, tal decorre do n.º 1 do artigo 121.º;

 

  • Os requisitos do artigo 121.º

O accionamento do instituto convolação da tutela cautelar em tutela definitiva, ou seja, antecipar o juízo da causa principal no seio do processo cautelar, vai depender da verificação de três pressupostos cumulativos, geralmente apontados como um de natureza substantiva e dois de cariz processual:

  1. a.      A manifesta urgência na resolução definitiva do caso

Decorre, em primeira mão, do artigo 121.º n.º 1 a exigência de uma “manifesta urgência na resolução definitiva do caso”;  Tal requisito deve ser aferido tendo em conta a natureza das questões em concreto, por um lado,  e à gravidade dos interesses em jogo, por outro, devendo permitir concluir, ou não, que a situação subjectiva em causa não se salvaguarda com a adopção de uma simples providência cautelar.

Neste âmbito, DORA LUCAS NETO divide este requisito (substantivo) em dois,  separando o requisitos:  “manifesta urgência na resolução definitiva do caso do requisito”(i);  de “a situação em presença não se compadecer com adopção de uma simples providência cautelar”(ii);

Para nós, na senda de MARLENE SENNEWALD , um parece consumir o outro, ora, se o caso revela manifesta urgência em ser resolvido de forma definitiva tal deve-se ao facto de a situação em causa não se compadecer com a adopção de uma simples providência cautelar.

De facto, uma questão vai carecer de uma decisão urgente definitiva  quando  haja um lapso temporal durante o qual o exercício do direito em jogo poderá produzir efeitos úteis e decorrido o qual se torna inútil qualquer demais pretensão de tutela (i); mas não só: a questão em causa deve exigir uma tutela que, pelas suas características, uma vez concedida, produza efeitos irreversíveis (ii);                                                                                                                        Verificados os requisitos apontados podemos caracterizar a situação como de urgência, não sendo possível salvaguardar a pretensão em causa com uma (tradicional) solução cautelar, dotada de provisoriedade e instrumentalidade (em relação à tutela definitiva) sendo assim apenas concedida quando se verifique o requisito da sua reversibilidade.

Quanto à “gravidade dos interesses envolvidos”, exigência da letra da lei, deve interpretar-se tal fórmula como um direito ou interesse digno de tutela especial, dada a sua importância[2]. UM possível campo de aplicação, no que a isto toca, serão os direitos e valores referidos no artigo 9.º n.º2 como por exemplo a saúde pública, o ambiente, o urbanismo,  a qualidade de vida, entre outros;       

Tendo em conta o exposto e a própria natureza do instituto, é facilmente compreensível que o campo privilegiado de aplicação da convolação da tutela cautelar em tutela final urgente são as providências cautelares antecipatórias[3].                

Dada a celeridade da questão, Doutrina e Jurisprudência alertam para a necessidade de uma urgência qualificada , uma vez que só excepcionalmente pode haver uma antecipação da decisão da causa principal.

AROSO DE ALMEIDA E CARLOS CADILHA apontam um exemplo em que a manifesta urgência se pode verificar quando falte a verificação de um requisito para a atribuição de uma providência cautelar, por exemplo, o caso de estarem verificados os pressupostos da alínea b) e c) do artigo 120.º, n.º 1, mas tal teria um custo desproporcional nos termos do n.º2 do 120.º.

 

  1. b.      A inclusão no processo de todos os elementos necessários;

Como defende o professor AROSO DE ALMEIDA, este pressuposto processual impõe que o tribunal deva estar em condições de apreciar a questão de fundo por dispor de “todos os elementos necessários para o efeito”, ou seja, as condições processuais que permitam acautelar a situação (substantiva) de urgência. Diz-se que a matéria deve estar madura para a decisão.[4]

Este é, de facto, um requisito de difícil verificação antes da acção principal, uma vez que geralmente só nesse momento se afere, em bom rigor, se as partes trouxeram ao processo todos os elementos relevantes  para a apreciação do mérito da causa.

 

  1. c.       A audição das partes

O legislador determina, na parte final do artigo 121.º n.º1 que as partes devem ser ouvidas no prazo de 10 dias. Neste momento processual, o juiz deve ouvir as considerações das partes e eventuais objecções no que toca  aos dois pressupostos referidos, nomeadamente sobre a verificação de uma situação de manifesta urgência na decisão definitiva do caso e sobre a inclusão no processo dos elementos necessários para uma decisão definitiva sobre o mérito da causa.

A necessidade de autonomizar a fórmula “devem ser ouvidas as partes no prazo de 10 dias”  num requisito, prende-se com o facto de ser apenas nesta instância que, de facto, é assegurado o contraditório. Para mais, a não observância desta audiência dos interessados constitui motivo de impugnação desta decisão, nos termos do n.º2 do artigo 121.º, constituindo, deste modo, indubitavelmente um requisito (autónomo) da decisão do n.º1;

 

  • A iniciativa Oficiosa

A este respeito atente-se ao ensinamento de ISABEL FONSECA: “a realização da tutela judicial das pretensões-de-urgência é vulgarmente realizada por um juiz detentor de amplos poderes, um sujeito-jurisdicional-de-urgência que é um verdadeiro administrador da justiça, quer do ponto de vista da gestão procedimental do processo, quer do ponto de vista dos poderes de pronúncia”. 

Tendo em conta o exposto, podemos defender que nada obsta a um decretamento oficioso do instituto em análise, uma vez que a decisão de antecipar o juízo de mérito sobre a causa principal consiste sempre numa decisão do juiz, não obstante ser este um serviço da tutela efectiva das partes, o accionamento está, em boa verdade, na mão do juiz.

 

  • A impugnação da decisão;

É expressamente prevista no n.º2  do artigo 121.º a possibilidade de impugnação da decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal.

Apenas pode ser impugnada a decisão antecipatória de juízo positivo, ou seja,  aquela que procedeu – não aquela que foi negada (porque, a título de exemplo, não estavam cumpridos os requisitos processuais – aliás, a fundamentação recomendada deve ser essa mesma);

Esta impugnação deve seguir os “termos gerais”, conforme resulta do n.º2 in fine,ou seja, deve seguir-se o regime do artigo 142.º e seguintes do CPTA;

 

  • Fundamento e Natureza do Instituto;

O fundamento do instituto em análise, como não poderia deixar de ser no âmbito de um contencioso subjectivo - um contencioso de pretensões, é o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tendo em vista um processo efectivo e temporalmente justo.

De facto, a decisão urgente sobre o mérito da causa será, neste caso,  o único meio eficaz para assegurar uma tutela efectiva do direito ou interesse legalmente protegido em causa.

Certa Jurisprudência[5] e Doutrina, nomeadamente DORA LUCAS NETO, apontam, ainda, como fundamento da antecipação da decisão da causa principal o princípio da economia processual.

Como apontado, estando reunidos todos os elementos que sejam necessários para decidir o mérito da causa deve o tribunal antecipar a decisão - por razões de economia processual  resolvendo, desta feita,  a questão de fundo e dispensando uma acção principal.

Não podemos deixar de aderir a esta posição, quando defendemos supra que “a matéria deve estar madura para a decisão” pressupomos que o tribunal deva estar em condições de apreciar a questão de fundo por dispor de “todos os elementos necessários para o efeito”. Ora, a autonomização deste requisito e a dispensa subsequente da acção principal conduz necessariamente à valoração de razões de economia processual por detrás do artigo 121.º verificando-se uma decisão rápida e definitiva.

  • A excepcionalidade do Instituto;

Doutrina e Jurisprudência apontam a necessidade de prudência ao aplicar o artigo 121.º.

Como sublinhado no Acórdão do TCA Norte, de 18.06.2009, proferido no âmbito do processo:  “O juízo de antecipação permitido pelo art. 121.º do CPTA importa e impõe ao julgador um grande rigor e exigência na interpretação e verificação dos pressupostos ali enunciados, bem como uma grande prudência naquela avaliação, tanto para mais que estamos perante um poder de exercício excepcional e cujo exercício irrestrito ou de fácil preenchimento conduzirá ou poderá conduzir a um claro deficit do direito de acesso aos tribunais e a um processo justo e equitativo, na certeza de que razões de realização de economia processual não conduzem e não legitimam limitações em sede de tutela jurisdicional a ponto de se poder pôr em causa tal direito e garantia”.

Também o professor VIERA DE ANDRADE é pragmático ao analisar o regime em causa ao referir a necessidade de especial cuidado na aplicação do instituto, pelo facto de permitir a emanação de um juízo de mérito definitivo sobre uma questão, quando o conhecimento do juiz é meramente sumário.

 

Bibliografia:

- NETO, DORA LUCAS “Notas sobre a antecipação do juízos sobre a causa principal (um comentário ao artigo121º do CPTA)” em Revista de Direito Público e Regulação;

- SENNEWALD, MARLENE  “O instituto da convolação da tutela cautelar em tutela final urgente consagrado no artigo 121.º do CPTA “ em Revista de Direito Público e Regulação;

- ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE “Manual de Processo Administrativo”;

-ANDRADE, JOSÉ VIERA DE  “"Justiça Administrativa";

 

 

 



[1] Neste sentido: Marlene Sennewald, “O instituto da convolação da tutela cautelar em tutela final urgente consagrado no artigo 121.º do CPTA” em Revista de Direito Público e Regulação;

[2] DORA LUCAS NETO entende tratar-se de um requisito substantivo, a ser aferido caso a caso, desde logo, para delimitação da aplicação excludente do artigo109º do CPTA. Também MARLENE SENNEWALD defende não se tratar (pelo menos directamente) de um direito, liberdade ou garantia, uma vez que estes estão acautelados de forma expressa pelo processo urgente de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, nso termos dos artigos 109.º e 110.º.

[3]  Neste tipo de providências, o que se pretende é que o direito ou o interesse que o particular pretende ver assegurado seja decretado provisoriamente, num momento anterior ao da decisão da causa. Em contraposição às providências conservatórias, estas criam efeitos jurídicos que ainda não existem, modificando a situação. Tal resulta da necessidade de produção imediata dos efeitos de um acto que o particular requereu sob pena de irreversibilidade da lesão.

[4] “Spruchreife”, como refere a Doutrina Alemã;

[5] Acórdão do STA de 16.01.2008, processo 0717/07,

in www.dgsi.pt. 

 

 

José Carracho

20639

Autoria e outros dados (tags, etc)

por José Carracho às 23:29

Domingo, 08.12.13

Princípios, Categorias e Critérios de Decisão das Providências Cautelares

 

           

 

Os processos cautelares destinam-se a assegurar o efeito útil do processo principal, como aliás resulta do artigo 112º do CPTA. O autor, num processo declarativo já intentado ou a intentar pede ao tribunal que adopte uma ou mais providências de forma a obstar que durante a pendência daquele se produzam danos que ponham em risco a utilidade da decisão que se pretende obter. Devem, por isso, ser propostas num momento preliminar, antes da propositura da acção principal, ou incidente, após ter sido intentado o processo declarativo.

 

           

 

Princípios

 



1.  Princípio da tutela judicial efectiva

 

 

Foi o princípio nuclear da reforma do CPTA, tendo recebido inclusive consagração constitucional expressa no que às medidas cautelares diz respeito (vide art. 268º nº4 CRP). Apontando para o princípio da plenitude dos meios de acesso à jurisdição administrativa impõe que a cada meio processual corresponda uma medida cautelar adequada o que por sua vez implica a consagração de um numerus apertus de medidas cautelares. Enquanto projecção do direito à tutela judicial efectiva, o princípio do favorecimento do processo aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais de modo a favorecer o acesso aos tribunais, impedindo o legislador de lhe criar obstáculos. Neste sentido, sempre que o objectivo em litígio corra o risco de perder o seu efeito, deve ser permitido aos interessados a possibilidade de requererem medidas cautelares em qualquer estágio do processo.

 

 

 

    2. Princípio da separação de poderes

 

 

Em relação a este princípio a doutrina, hoje, entende que se trata de um princípio de equilíbrio que não afasta outros poderes, promovendo sim a colaboração e interpretação de poderes, não decorrendo deste uma proibição absoluta de o juiz condenar, ou impor determinados comportamentos à Administração. Apenas se lhe encontra vedado substituir-se àquela ou a violar núcleo essencial da sua autonomia. Nas palavras da Dra. Fernanda Maçãs, “De um modo geral, a intervenção cautelar substitutiva ou condenatória do juiz administrativo depara-se com um limite fundamental: não pode ser expressão de escolha discricionária dos interesses da ou valorações técnicas que são reservados à administração.” Reside, por isso, no princípio da separação de poderes um primeiro limite às medidas cautelares positivas quando haja recusa de actuações discricionárias.


   

 

    3.  Princípio da prossecução equilibrada do interesse público e do respeito e interesses legalmente protegidos dos cidadãos que incumbe à Administração

 

 

O critério nuclear da tutela cautelar é o da aparência de bom direito, valendo a ponderação de interesse público apenas como critério subsidiário, no quando existam dúvidas acerca da existência do fumus boni iuris. Não se pode, por isso, ignorar a sua importância na apreciação das medidas cautelares. Todavia, embora possa constituir um critério a ter em conta e a ponderar em circunstâncias concretas, a aparência do bom direito não é critério bastante para, por si só, legitimar a outorga da tutela cautelar no contencioso administrativo.

 



Características

 

 

 

    1. Instrumentalidade

 

 

A instrumentalidade resulta da acessoriedade do processo cautelar relativamente ao processo principal para que se assegure o efeito útil da sentença que

nele virá a ser proferida (art. 112 nº1). Como consequência da dependência do processo cautelar, sempre que este for intentado em momento anterior àquele, ou seja, como preliminar (art. 113º nº1), as providências que vierem a ser adoptadas caducam se, no prazo de três meses, o requerente não fizer uso do meio principal adequado. O mesmo acontece quando, por negligência do interessado, o processo principal se encontrar parado por igual período ou se nele vier a transitar em julgado uma decisão desfavorável às suas pretensões (art. 123º nº 1).

 

 


    2. Provisoriedade                                                                                                     

 

 

O tribunal pode, na pendência do processo principal, revogar, alterar ou substituir, quando ocorram alterações importantes das circunstâncias existentes inicialmente existentes (124º nº1), nomeadamente quando tenha sido proferida, no processo principal, uma decisão de improcedência da qual tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo (art. 124 nº 3).

 

                               

 

    3. Sumariedade

 

 

O tribunal, com base em juízos sumários sobre os factos a apreciar, deve apenas proceder a apreciações rápidas e provisórias, evitando, dessa forma, evitar antecipar juízos definitivos que, regra geral, só devem ter lugar no processo principal. Daí se retira que quanto mais moroso for o processo de indagação, menor capacidade terão os tribunais em assegurar atempadamente a tutela cautelar que se exige.

 

 

 

Categorias de Providências Cautelares

 


            O CPTA, no artigo 112º nº2, abre a porta a todo o tipo de providências capazes de assegurar a utilidade da sentença a proferir em sede de processo principal. Esta cláusula geral, surge com o objectivo de dar cumprimento ao princípio da tutela da jurisdição efectiva perante a administração pública e é reforçada no nº 2 do artigo supra referido que vem enunciar, apenas a título exemplificativo algumas das providências que podem ser adoptadas pelos tribunais. Dispõe o artigo 112º nº2 o seguinte:

a) Suspensão da eficácia de um acto administrativo ou de uma norma;

 b) Admissão provisória em concursos e exames;

c) Atribuição provisória da disponibilidade de um bem;

d) Autorização provisória ao interessado para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta;

e) Regulação provisória de uma situação jurídica, designadamente através da imposição à Administração do pagamento de uma quantia por conta de prestações alegadamente devidas ou a título de reparação provisória;

f) Intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular, designadamente um concessionário, por alegada violação ou fundado receio de violação de normas de direito administrativo.

 

            O artigo 120º nº1 estabelece uma contraposição entre dois tipos de providências cautelares, as providências conservatórias e as providências antecipatórias que deve ser interpretada num sentido funcional sendo que as primeiras correspondem a situações jurídicas estáticas em que a satisfação do interesse do titular não depende de prestações de terceiros, pretendendo-se por isso, segundo o Prof. Aroso de Almeida “que os demais se abstenham da adopção de condutas que ponham em causa a situação em que está investido”. Nas providências antecipatórias, pelo contrário, correspondem a situações jurídicas instrumentais em que “a satisfação do interesse do particular depende da prestação de outrem, pelo que ele pretende obter a prestação necessária à satisfação do seu interesse”.

            No primeiro caso o que visa é manter ou conservar um direito em perigo, sendo a medida cautelar adequada a conservatória (art. 112º nº2, a)) através da suspensão da eficácia do acto administrativo (arts.128º e 129º). Na segunda situação o que é a obtenção de uma prestação através de medidas que podem ou não envolver a prática de actos administrativos. O interessado nestes casos pretende a obtenção de um efeito favorável no processo declarativo, concretizando-se a tutela cautelar “na intimação cautelar à adopção das medidas necessárias para minorar as consequências do retardamento da decisão sobre o mérito da causa” (alíneas b) e e) do art. 112 nº2).

 



Critérios de Decisão na Atribuição das Providências Cautelares

 



    1. O Critério do Periculum in Mora

 

 

De acordo com artigo 120º nº, alíneas b) e c), o critério do periculum in mora encontra-se preenchido quando “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízo de difícil reparação para os interesses do requerente”. Em traços gerais, representa o risco que pode resultar de uma decisão tardia sobre o processo principal, pelo que, de forma a obstar a que se verifiquem danos graves e de difícil reparação se pretende uma procedência ou suspensão urgente.  

 

 

 

    2.  O Critério do Bom Direito


 

Este critério encontra-se preenchido quando exista a aparência de que o direito invocado tem realmente existência no caso concreto baseando-se numa apreciação sumária e provisória da probabilidade de êxito do processo principal. Pela negativa, o fumus boni iuris, estará sempre verificado quando, nas palavras da Dra. Fernanda Maçãs, “o recurso principal não apareça à primeira vista desprovido de fundamento”.

 

 

 

    3. O Critério da Ponderação de Interesses

 

 

Nos termos do art. 120 nº2 o decretamento de providências cautelares poderá ser recusado “quando devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências”. Trata-se de uma cláusula de salvaguarda, uma vez que, caso se venha a considerar que os danos que os danos que seriam provocados pelo decretamento da providência seriam de tal foram desproporcionais em relação àqueles que se visavam evitar não se terão em conta os critérios das alíneas b) e c), havendo por isso fundamento para recusar a tutela cautelar.  

 



Conclusão

 


            O decretamento de providências cautelares terá sempre que ser decidido caso a caso tendo em atenção as circunstâncias de cada situação, bem como os interesses em jogo que se encontram presentes e, ainda, por forma a procurar uma solução justa que tenha em conta todos os interesses da situação concreta, à natureza e valor dos bens jurídicos em causa.

                                                                                    

 

 

 

 

Bibliografia:

  • Artigo da Dra. Fernanda Maçãs – “As Medidas Cautelares” – Debate Universitário in Reforma do Contencioso Administrativo Volume I 2003

  • Manual de Processo Administrativo - Mário Aroso de Almeida

  • Código de Processo nos Trinbunais Administrativos

 

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Diogo Tadeu às 11:33

Domingo, 08.12.13

Notas sobre o art. 161 do CPTA

 

  1. Considerações iniciais

 

O art. 161 do CPTA vem estabelecer uma solução inovadora no processo administrativo, que passa por admitir que os efeitos de uma sentença sejam estendidos a um terceiro que nela não tenha intervindo, e que se encontre numa mesma situação jurídica (art. 161/1), quer tenha ou não recorrido à via judicial, e no caso de ter recorrido, não exista sentença transitada em julgado[1].

A razão que levou a que tal solução tenha tido consagração legal, foi, essencialmente, uma razão de economia processual[2], dado que, por não raras vezes, a um conjunto numeroso destinatários é aplicado, por parte da administração, o mesmo regime normativo, nomeadamente em matéria de funcionalismo público e no âmbito de concursos[3].

Assim, com esta possibilidade, o interessado na extensão dos efeitos da sentença pode obter para si as decorrências da anulação de um acto administrativo, ou ver-se reconhecido numa situação jurídica favorável, aproveitando-se da resolução do pleito contra a administração, movido por terceiros, e já transitado em julgado (art. 161/1).

 

  1. Requisitos de aplicação da figura

 

O art. 161/2 vem determinar os requisitos necessários para que o interessado se possa valer do mecanismo previsto no número 1 do mesmo artigo: desde logo, é imperativo que os casos, do interessado e dos terceiros, sejam perfeitamente idênticos; por outro lado, devem já ter sido passadas em julgado cinco sentenças ou, havendo processos em massa, tenham sido decididos três processos seleccionados[4]. Quanto aos dois últimos requisitos, não parece haver dificuldades de determinação; já quanto ao primeiro, é necessária uma abordagem mais cuidada.

Situações idênticas não parecem ser sinónimos de “as mesmas situações”. Neste contexto, crê-se dever dar prevalência, como parece que faz Luís Filipe Colaço Antunes[5] à primeira expressão, e não à segunda[6]. Por outro lado, ao estabelecer-se que as situações terão de ser idênticas, não se está a falar de identidade absoluta, mas sim de uma identidade quanto à situação fáctica relevante, e quanto à sua qualificação e tratamento jurídicos[7]/[8].

            Nos termos do art. 161/5, vem ainda exigir-se que, havendo contra-interessados que não hajam estado como partes no processo em que foi proferida a sentença, o autor que requer a extensão dos seus efeitos, tenha lançado previa e tempestivamente mão da via judicial adequada a tutela da sua posição jurídica; no caso de já ter caducado o direito de actuar sobre o acto administrativo, não é possível estender ao particular os efeitos da sentença. Não deve contudo confundir-se aqui a prescrição substantiva com o prazo para actuar judicialmente. É este último que conta, para efeitos desta questão[9].

 

  1. Pressuposto e aspectos do recurso ao tribunal

 

Antes de recorrer ao tribunal, o interessado deverá primeiramente dirigir a sua pretensão à entidade administrativa que tenha sido demandada na sentença da qual se pretende estender os efeitos, tendo um ano para o fazer, a contar da última notificação de quem tenha sido parte no processo onde a dita sentença tenha sido proferida (art. 161/3). A bondade desta solução, que visa precisamente evitar o entupimento dos tribunais com processos em massa, e que funciona como pressuposto de recurso ao tribunal, não parece contudo destinada a cumprir o seu desígnio, dada a complexidade da demonstração pelo particular de que está numa mesma situação, ou melhor, de que o seu caso é perfeitamente idêntico aos já apreciados pelo tribunal[10]; não parece fácil então, que a administração aceite estas situações, sendo a necessidade do recurso aos tribunais algo de previsível antevisão.

Se a administração indeferir a pretensão do autor, ou se passarem três meses sem que nada diga, pode o particular recorrer ao tribunal, e pedir a extensão dos efeitos da sentença e a sua execução, tal como consta do art. 161/4. A este propósito, é relevante a questão de saber onde deve ser intentada a acção. Do exposto no art. 161/4, parece que a acção deverá ser intentada no tribunal que proferiu a sentença da qual se pretendem estender os efeitos. Assim, por exemplo, se o processo referente a essa sentença tivesse subido até ao STA, seria este o tribunal competente para julgar a pretensão do autor do pedido de extensão de efeitos. Não é contudo essa a linha de entendimento da jurisprudência[11], que acompanha na íntegra o defendido por Luís Filipe Colaço Antunes[12]. Assim, o tribunal competente para apreciar a questão é, precisamente, o tribunal que tenha proferido a sentença em primeiro grau de jurisdição (veja-se aliás, que é essa a mesma solução para os casos de execuções de sentenças de anulação de actos administrativos, conforme o disposto no art. 176/1).

Deve contudo referir-se que, em certos casos, não é necessário recorrer primeiro à administração antes de peticionar no tribunal. Em primeiro lugar, temos a hipótese dos casos de processos em massa, em que, nos termos do art. 48/5-b, aquele que tenha visto o seu processo suspenso, pode pedir ao tribunal a imediata extensão dos efeitos da sentença passada em julgado (e sem estar limitado à necessidade das três sentenças quanto aos processos em massa)[13]. Em segundo lugar, referimo-nos aos casos previstos no art. 161/6, isto é, aos casos em que em relação ao mesmo acto tenham sido movidas duas acções de impugnação, e uma delas tenha transitado em julgado – o autor do outro processo, ainda não decidido, pode pedir a extensão da sentença de anulação, e sem as condicionantes acima referidas[14]/[15].

 

O mecanismo o art. 161 permite que os interessados possam obter os efeitos de uma sentença que obteriam para si no caso de terem intentado tempestivamente a acção de impugnação de actos administrativos[16]. Ou seja, permite-se que, em relação àqueles que deixaram por algum motivo decorrer o prazo para agir processualmente conta um acto administrativo, pedindo a sua impugnação, possam todavia beneficiar dessa impugnação, proferida num processo movido por um terceiro. Esta particularidade justifica-se em parte pelo facto de se tratarem de processos em massa, o que leva a uma sobreposição do princípio da igualdade face à impossibilidade de agir processualmente por intempestividade[17]. Todavia, parece não ser de carácter ilimitado, devendo exigir-se a boa fé processual[18] daquele que requer a extensão dos efeitos, caracterizada por Luís Filipe Colaço Antunes, como “um justo e rigoroso impedimento”[19].

Quanto ao ónus de alegação e prova, aplicando as regras gerais do CC temos que: cabe ao particular demonstrar que se encontra numa situação perfeitamente idêntica àquela que consta da sentença, e em que cinco casos, também eles idênticos, já tenham sido passados em julgado, ou, no caso de processos em processos de massa, três já tenham sido definitivamente decididos. À administração caberá demonstrar o contrário, ou seja, a inexistência dos pressupostos; no caso de prescrição substantiva do direito do autor, que impede a extensão dos efeitos da sentença[20], também caberá à administração alegar e prova-la, defendendo-se neste caso por excepção peremptória.

A sentença que profira a extensão dos efeitos de uma decisão transitada em julgado é, ela própria, uma sentença de mérito, e proferida em processo declarativo, onde são aplicáveis as regras referentes à anulação de sentenças de actos administrativos (arts. 173 e ss.) podendo como tal ser objecto de recurso[21].



[1] Esta norma tem como inspiração o art. 110 da Ley de la Jurisdiccion Contencioso-administrativa

[2] Sobre o princípio da economia processual v. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3ª edição, pp. 203 e ss.

[3] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 146. Veja-se também Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo 161.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: uma complexa simplificação, in Cadernos de Justiça Administrativa n.º 43 p. 16., onde afirma que “(…) mais de setenta por cento do contencioso administrativo incide sobre litígios da função pública (…)”, gerando por isso situações em que a numerosos destinatários serão aplicadas decisões com o mesmo tipo de conteúdo, contanto que os destinatários estejam em idênticas situações.

[4] Em crítica da exigência de decisão sobre três processos seleccionados, no âmbito dos processos em massa, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 6ª edição, p. 365, em especial nota 793.

[5] Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p. 19.

[6] Assim também, pelo que se crê, Mário Aroso de Almeida, Manual…, p. 146-147.

[7] Acórdão do TCA Sul, referente ao processo 07383/11; considerou-se que eram idênticas as situações de carreira de Motorista de Pesados e a carreira de Condutor de Máquinas Pesadas e Veículos Especiais, por a matéria de facto requerer o mesmo tratamento jurídico.

http://www.gde.mj.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/1dc4b6de208cb70180257894003814d7?

[8] Parece ser o mesmo que propugna Luís Filipe Colaço Antunes quando refere que “[estão os interessados] legitimados a solicitar o mesmo por força da identidade dos fundamentos jurídicos e factuais”

[9] Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, 3ª edição, p. 108.

[10] Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p.18-19. Aliás, nota também Vieira de Andrade, A Justiça…, p. 364, nota 791, que este pressuposto, foi retirado da lei espanhola, inspiradora da nossa, dado não ter funcionado bem.

[11] V. ac. do STA referente ao processo 01026A/03, disponível www.dgsi.pt

[12] Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p. 20

[13] Vieira de Andrade, A Justiça…, p. 365

[14] V. ponto 2.

[15] Vieira de Andrade, A justiça…, p. 366

[16] Quanto às acções referentes ao reconhecimento de uma situação jurídica favorável, aplica-se o disposto no art. 41/1, pelo que este problema se não coloca, colocando-se antes a questão da prescrição substantiva, que já consubstancia uma excepção peremptória modificativa.

[17] Vieira de Andrade, A justiça…, p. 365 e Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p. 21.

[18] Vieira de Andrade, A justiça…, p. 366.

[19] Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p. 23.

[20] Luís Filipe Colaço Antunes, O artigo…, p. 21.

[21] Mário Aroso de Almeida, Manual…, p. 148 e Vieira de Andrade, A justiça, p. 365.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por André Fortunato às 01:57

Sábado, 07.12.13

Da Inexecução de Sentenças

 

Artigo 45º, nrº 1 CPTA


Uma das novas tarefas do juiz após a reforma do contencioso administrativo prende-se com o conhecimento antecipado das causas legítimas de inexecução de sentença que encontra consagração expressa no mecanismo de modificação objectiva da instância consagrado no artigo 45º CPTA, para as acções administrativas comuns e especiais (ex vi artigo 49º CPTA) e no artigo 102/5º CPTA para o contencioso pré-contratual de natureza urgente. O legislador confere ao juiz a possibilidade de “ditar e conhecer agora” o que sempre iria “ditar e conhecer depois”.1

Este artigo é inspirado no “princípio da flexibilidade do objecto do processo” 2 visando antecipar o juízo sobre a existência de causas legítimas de inexecução da sentença3 que venha a ser proferida, permitindo assim evitar, em casos excepcionais, a pronuncia de decisões judiciais insusceptíveis de em sede executiva, se materializarem, trazendo para a acção declarativa o problema da indemnização devida pelo facto da inexecução legítima da sentença.

Exclui uma decisão formal de extinção da instância por impossibilidade superveniente da causa. Impondo uma decisão de mérito, mas – ao abrigo de uma interpretação rectificativa do nrº1 – de procedência, sobre os fundamentos do pedido e não de improcedência inicial do pedido.

A expressão “o tribunal julga improcedente o pedido em causa”, surgiu com a Lei nº 4-A/2003 de 19/2, em substituição da expressão “o tribunal não profere a sentença requerida”, que se manteve no artigo 102º CPTA. A ideia é que o tribunal não pode deixar de proferir decisão, no entanto a expressão não foi feliz. Julgar improcedente o pedido inicial, acabaria por “matar” a justificação para o pedido de indemnização. A condenação em indemnização constitui um substituto ao pedido inicial, devendo ter factos para o sustentar, logo a intenção do legislador não pode ter sido a de transformar a acção inicial numa acção totalmente nova, mas sim antecipar o juízo sobre a existência de causa legítima de inexecução da sentença: a proferir sobre o pedido inicial.

Na verdade, se o pedido do autor fosse mesmo improcedente, então, para além do autor ter que pagar as custas do processo, o tribunal não teria que convidar a Administração a acordar com ele no pagamento de uma indemnização, que no caso não seria devida.

 O regime deste artigo tem sido bastante criticado, havendo quem o considere inconstitucional por entender que violava o princípio da separação de poderes bem como o princípio do pedido.4

o artigo é omisso quanto à sua inaplicabilidade naqueles casos em que, atendendo ao autor, se sabe que mesmo havendo impossibilidade absoluta ou excepcional prejuízo público da execução em espécie da sentença, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização, como ocorrerá nos casos em que o autor é o Ministério Público(“acção popular”) ou em acções populares. Neste casos impõe-se que o processo siga até ao final, sobre pena de denegação da justiça, independentemente do que venha a acontecer em sede de execução da sentença proferida.5

Na hipótese deste nrº1, a lei dispõe que logo no processo declarativo – é um ônus seu fazê-lo aqui – a administração alegue e comprove a existência dessa situação em que se encontra estando-lhe vedado invocar no processo executivo uma impossibilidade ou prejuízo que já então estivesse em condições de o invocar (artigo 163/3º). O ônus em que a administração está constituída de alegar, os motivos de interesse público já existentes que obstem ao cumprimento dos deveres em que seria condenada, sob pena de não o poder fazer mais tarde em sede de processo executivo

Qual o âmbito temporal deste ônus processual? Só vale para as causas e motivos que existirem até ao termos do prazo de contestação ou estende-se através de um articulado superveniente? Optaremos pela segunda opção, em acordo com Autores do CPTA.6

Face ao anterior regime, a principal diferença resulta de, no passado, o processo declarativo principal correr normalmente até ao seu termo, para só depois, no processo executivo se discutir e resolver a questão da “conversão” da acção, enquanto à luz do novo regime esta questão deve ser discutida no processo declarativo, se os pressupostos da inexecução legítima já existirem em tal momento.

Se o tribunal entender procedente essa invocação da Administração, a pretensão formulada pelo autor vai ser objecto de uma modificação objectiva, deixando de ter como objecto o pedido inicial e passando a versar sobre a indemnização devida pela causa legítima de inexecução.

Vera Eiró7 diz-nos que existindo uma causa legítima de inexecução, estamos na presença de uma obrigação de indemnizar fundada na prática de um acto lícito. Para justificar a sua posição, apoia-se no artigo 166º CPTA, dizendo que “os prejuízos que deverão ser ressarcidos ao abrigo deste mecanismo processual prendem-se tão-só com os prejuízos resultantes de uma eventual e posterior causa legítima de inexecução da sentença, que poderão ser não coincidentes com os prejuízos” que decorrem do pedido inicial. O elemento da ilicitude não é ponderado, uma vez que o que está em causa é a existência de uma causa legítima de inexecução que quebra o nexo de causalidade com o acto inicialmente ilícito.8 

Já Mário e Rodrigo9referem que o preceito em análise “proporciona ao autor, a reparação de dano que ele possa ter sofrido por ter sido ilegalmente preterido”, reconhecendo assim ao autor o direito a uma indemnização para reparação de todos os danos que decorram da conduta ilegal inicialmente adoptada pela entidade demandada, estando assim implícito que o facto que origina a obrigação de indemnizar é o acto ilícito que deu origem ao pedido. Referem ainda Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha10, que“a declaração de ilegalidade é requisito prévio da atribuição da indemnização, pelo que o convite do tribunal no sentido de ser definido um montante indemnizatório pressupõe, não apenas a possibilidade de dar cumprimento à sentença, mas também a constatação da procedência de algum dos fundamentos da impugnação”.

 A inexecução de sentenças fundada em causas legítimas traduz a contraposição de dois interesses públicos11:o interesse público que se opõe à execução da sentença e o interesse público que a Administração cumpra as leis e acate as decisões dos tribunais. Quando ocorra causa legítima, é evidente que o primeiro interesse terá que prevalecer sobre o segundo, ficando a administração constituída no “dever automático”12de indemnizar.

No nosso ordenamento jurídico são tradicionalmente consideradas duas causas legítimas, que actuam como pressupostos para a modificação objectiva da instância:

  1. Impossibilidade absoluta da satisfação plena dos interesses do autor, esta não é uma impossibilidade relativa, por ser de dificílimo cumprimento, sendo antes uma situação de impossibilidade objectivade não se conseguir realizar o pedido. Note-se que esta impossibilidade deve entender-se referida apenas às hipóteses de a Administração ser demandada com vista à realização de uma prestação de facto ou de coisa (ou da execução da sentença anulatória vir a implicar uma dessas prestações)13, estando excluídas, por natureza, as acções que tenham por objecto (ou como consequência) o pagamento de uma quantia, pois em relação a elas nunca há impossibilidade absoluta. Tal como refere Diogo Freitas do Amaral14 “deve ser encarada de forma objectiva, como circunstância cujo reconhecimento não envolve a formulação de qualquer juízo valorativo”.
  2. Excepcional prejuízo para o interesse público, e já não apenas um grave prejuízo, como constava do texto inicial do Código, deve ser objecto de um particular cuidado e prudência pelo tribunal, que só deverá fazer funcionar o regime do artigo 45º quando o cumprimento dos deveres a que a Administração seria condenada consubstancie uma lesão enorme de um interesse público relevante, o que não sucede quando estão em causa prejuízos financeiros pela razão de a indemnização devida pela modificação objectiva da instância corresponder, nesses casos, à quantia reclamada na acção de condenação da Administração ao pagamento de uma dada quantia. Trata-se aqui de ponderar os interesses em causa e de considerar prevalecente o interesse público.

Assim, se a administração for condenada a restituir uma quantia ou a indemnizar um prejuízo, há que cumprir a sentença, custe isso o que custar – mas, se se tratar, por exemplo, de cumprir uma ordem judicial de demolição de um edifício ilegalmente construído ao abrigo de uma licença administrativa que foi demandada por um vizinho, e isso implicar, para o erário público, o pagamento de indemnizações vultosíssimas àquelas que aí habitavam ou faziam profissão ou comercia, admite-se que as dificuldades financeiras do cumprimento da sentença ou as consequências que isso teria na satisfação de interesses públicos relevantes, já permitam a conversão desta ao pagamento dos prejuízos sofridos pelo tal vizinho. 15

Assim sendo, havendo uma situação de causa legítima de inexecução de sentença, o que deverá neste momento fazer o juiz? A primeira tarefa que incumbe ao tribunal é averiguar e decidir, no âmbito do processo instaurado, se o pedido do autor é procedente, se tendo em conta os factos provados ele vinga, pois só nesse caso é que a administração estará constituída no dever de satisfazer a pretensão formulada, e só nesse caso o tribunal deverá convidar as partes a acordarem no montante da indemnização devida pelo facto de não se poder realizar o pedido em causa.

 O juiz deve assim convidar as partes a acordarem a indemnização devida. Só depois de as partes acordarem, ou não, o montante deve o juiz proferir sentença, onde se incluirá a menção ao montante devido ao autor, seguindo-se, para o processo de execução para o pagamento de quantia certa, se necessário.

Das duas uma:

  • Se o tribunal reconhecer razão ao autor, quanto à procedência da sua pretensão mas não reconhecer as razões que levam a inexecução legitima da sentença invocada pela Administração, então só lhe resta assegurar que ela cumpre a sentença.
  • Se o tribunal reconhecer razão ao autor, quanto à procedência da sua pretensão, mas reconhece que existe também uma situação de impossibilidade absoluta ou excepcional prejuízo público nesse cumprimento, o tribunal deve “convidar as partes no prazo de 20 dias, no montante da indemnização devida” pelo não cumprimento da prestação em que a autoridade pública estava (ou iria estar) constituída, e pelos demais danos recorrentes da sua actuação ilegal.

 Resta concluir-se dizendo que, a questão da existência ou inexistência dos pressupostos da impossibilidade absoluta ou excepcional prejuízo para a administração é decidida tal como a pretensão do autor, com respeito pelo princípio do contraditório, se necessário com audiência de julgamento e alegações das partes.  As decisões do tribunal nesta matéria, sejam elas quais forem, são passíveis dos recursos que o valor ou a natureza da causa o consentir.

 

Artigo 45º, nrº2

A prorrogação do prazo de 20 dias por mais 40 – até 60 dias no total – pode ser concedida a requerimento das partes, quando for previsível que o acordo das mesma sobre o montante de indemnização devida não está longe de ser alcançado.

 

Artigo 45º, nrº 3

Não se chegando a acordo sobre o montante da indemnização, no prazo supra, o autor regressa ao tribunal para lhe ser aí atribuída a indemnização que lhe deve ser paga.

Note-se que o tribunal só tinha avaliado e julgado sobre a pretensão inicial do autor e, na contestação, sobre a existência de uma situação de impossibilidade ou excepcional prejuízo público no caso do seu cumprimento.

O autor deverá alegar e demonstrar, para que o tribunal na falta de acordo “lhe atribua o montante devido”, no requerimento a apresentar no processo, os elementos de facto e de direito em que fundamenta o seu pedido indemnizatório. Tal como Verá Eiró16, diz-nos que as “razões de direito apenas se prendem com a enunciação do preceito do CPTA que prevê a possibilidade de o autor requerer a determinação do montante da indemnização.”

 Recebido o requerimento, a entidade administrativa demandada é chamada a responder-lhe nos mesmos termos. Ela e, eventualmente, os contra interessados – se já os havia no processo nessa qualidade (na acção administrativa especial) – porque, se eles vierem a tirar vantagem da inexecução da sentença, também pode dar-se o caso de virem a ser considerados responsáveis por uma parte da indemnização devida ao autor.17 

E qual o prazo ele deve requerer a fixação judicial dessa indemnização? A lei nada diz, tendo que concordar Rodrigo e Mario Esteves de Oliveira18, que não vale aqui o prazo geral do artigo 29º (10 dias), porque para o efeito, o autor tem de articular os factos e o direito em que se baseia a sua pretensão (a determinado montante indemnizatório), tento que articular tudo o que haja de factual e juridicamente relevante sobre os danos emergentes e os lucros cessantes que sofreu.

E para tal tarefa o prazo de 10 dias é manifestamente desproporcionado, face aos prazos do nrº 1 e nrº2. Prefere-se portanto, à falta de melhor, o prazo de 6 meses do artigo 170/2. No entanto, o autor poderá sempre servir-se nos termos do nrº5 do prazo substantivo de três anos de prescrição do direito à indemnização.

A perda do direito com fundamento na causa legítima de inexecução da sentença (seja por impossibilidade absoluta,seja o grave/excepcional prejuízo para o interesse público) dá origem a uma obrigação de indemnizar que se aproxima do conceito de justa indemnização. O critério para esta justa indemnização, terá que passar pela ponderação do princípio da igualdade19: o autor, ao propor a acção, incorreu em despesas e fez um investimento dirigido à emissão de uma sentença favorável aos seus interesses e à efectiva execução desta sentença. Estas despesas colocam-no assim, numa situação de desigualdade que deverão ser cobertas por uma compensação, aquando do montante de indemnização.

 

 Artigo 45º, nrº 4

Concluída a fase de instrução, nos termos do nrº 3, deve o tribunal “fixar o montante de indemnização devida”. Sem se prever a necessidade de realização de uma audiência de discussão e julgamento, nem de uma prévia decisão da matéria de facto. No entanto, a sentença que fixa a indemnização há-de conter, no mínimo, uma decisão expressa sobre a matéria de facto invocada e considerada provada e, por outro lado, que a opção pelo processo célere do nrº 4 não prejudica o dever de respeitar as exigência fundamentais do contraditório e da verdade,, nem o direito de qualquer das partes recorrer da sentença proferida (quando o valor ou a natureza o permita).

Assim, a pergunta que se impões é: porque danos deverá a entidade demandada responder? Tal como refere Vera Eiró20, “o montante de indemnização deve ser calculado numa lógica de compensação e não de sanção e decorrente da impossibilidade de inexecução da sentença e não de uma ponderação de eventualidade de sofrimento de danos.”

Assim, trata-se não só de considerar a entidade demandada responsável pelos danos provocados mas também de atribuir ao autor da acção uma “justa indemnização” por lhe ter sido retirada a possibilidade e oportunidade de usufruir dos normais efeitos de uma execução de sentença a seu favor.

 

Artigo 45º, nrº 5

Relativamente a este número, existe uma discussão doutrinal entre a alternatividade ou cumulatividade,  de indemnização devida.

Quanto à alternatividade, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira21, dizem-nos que em vez de optar pelo processo dos números anteriores, o autor pode deduzir, em acção própria, um pedido autónomo de reparação de prejuízos e danos resultantes da actuação ilegal da administração, nos termos da alínea f) ou g) do artigo 37/2. Entendem a possibilidade de propor uma acção administrativa comum é uma alternativa ao requerimento de “atribuição do montante de indemnização devida” pelo facto de inexecução, dizendo ainda que “em vez de optar pelo processo nos números anteriores, o autor pode deduzir, em acção própria, um pedido autónomo de reparação dos prejuízos”.

 Quanto à cumulatividade temos Vera Eiró22 para quem o mecanismo deve ser no sentido de para além de o autor poder acordar no montante de indemnização devida pelo facto de inexecução da sentença, ele poderá ainda propor uma acção de responsabilidade civil para ser ressarcido de todos os danos causados pelo acto inicialmente ilícito (devendo, nesta sede, preencher os pressupostos da responsabilidade civil por acto ilícito).  Ela diz-nos que a leitura correcta deste preceito passa por substituir a expressão “em vez de optar” pela expressão “para além de optar”, já que a opção pela indemnização prevista no âmbito da convolação do processo não preculde a propositura de uma acção comum de responsabilidade civil.

A meu ver o prazo que se dispõe para o efeito, deverá ser o prazo de três anos relativo à prescrição do seu direito indemnizatório a partir do termo do prazo de 20 ou 60 dias a que se refere o nrº2. Entendendo-se que a acção pode ser instaurada a todo o tempo, nos termos do artigo 41/1º CPTA.

 

 

Conclusões:

 

O resultado da aplicação deste mecanismo é uma sentença cuja execução não comporta momentos declarativos, incluído apenas uma fase de execução que segue o processo de execução de pagamento de uma quantia certa.

A situação de impossibilidade ou de prejuízo excepcional deve ser uma situação actual, não podendo assentar em impossibilidades ou prejuízos futuros, que se verificarão à data de uma eventual sentença. Se tal questão se verificar futuramente, ela será tratada em sede executiva, nos termos do artigo 166º e ss. CPTA

Teremos que ter em conta que apenas o pedido inicial é substituído. A causa de pedir que o apoia apenas terá de ser ampliada de modo a sustentar o novo pedido de indemnização. Isto porque, não sendo inicialmente formulado este pedido, naturalmente não foram também inicialmente indicadas as razões de factos de de direito que o sustentam. Assim ao pedido inicial acrescem, como causa de pedir, os factos que impões o dever de indemnizar. 

A indemnização tem natureza civil de reparação e não natureza sancionatória. É, por definição, reparação de um prejuízo ou dano, pela reconstituição natural da situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão e, quando esta restituição não é possível, o pagamento em sucedâneo pecuniário. Os factos que servem de base à indemnização, normalmente, pela natureza das coisas, são factos pessoais do lesado e por isso melhor este do que o tribunal os pode trazer a juízo.

 

1.  VERA EIRÓ, “Quanto vale uma sentença?” in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina 2008

2.DIOGO FREITAS DO AMARAL, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, Almedina

3. Estamos perante a existência de "situações excepcionais que tornam lícita a inexecução de uma sentença,que obrigue, no entanto, a Administração a pagar uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução” definição, dada por Diogo Freitas do Amaral, in Direito Admnistrativo volume IV

4.VASCO PEREIRA DA SILVA, “Todo o contencioso administrativo se tornou de plena jurisdição”, in Cadernos de Justiça administrativa, n.º34

5.MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA , Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I, Almedina

7.Vera Eiró, "Que indemnizaçãoo é esta?"in Cadernos de Justiça Admnistrativa, nrº62

8.VERA EIRÓ, “Quanto vale uma sentença?” in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina 2008

 9. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I, Almedina

10.MÁRIO AROSO DEALMEIDA, CARLOS CADILHA, comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos

11. VERA EIRÓ, “Quanto vale uma sentença?” in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina 2008

12. Mário Aroso de Almeida in Anulação de Actos Admnistrativos e Relações Jurídicas Emergentes

13.MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I, Almedina

14. Diogo Freitas do Amaral in direito admnistrativo, vol IV

15. exemplo dado MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I

16.7.Vera Eiró, "Que indemnizaçãoo é esta?"in Cadernos de Justiça Admnistrativa, nrº62

18.MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I, Almedina

19. VERA EIRÓ, “Quanto vale uma sentença?” in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina 2008

20.Vera Eiró, "Que indemnização é esta?"in Cadernos de Justiça Admnistrativa, nrº62

21.Vera Eiró, "Que indemnização é esta?"in Cadernos de Justiça Admnistrativa, nrº62

22.MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA e outros, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotado vol. I, Almedina

23.Vera Eiró, "Que indemnizaçãoo é esta?"in Cadernos de Justiça Admnistrativa, nrº62; VERA EIRÓ, “Quanto vale uma sentença?” in Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Almedina 2008

Autoria e outros dados (tags, etc)

por monicafradique às 16:22

Sábado, 07.12.13

Mais vale prevenir do que remediar...

Um dos objectivos que pretendiam ser prosseguidos com a reforma do contencioso administrativo consistia em garantir uma tutela jurisdicional efectiva dos administrados face à Administração, consagrada nos artigos 20 n.º 1, e 268, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

 

Este princípio da tutela jurisdicional efectiva determina que todas as pessoas devem poder recorrer aos tribunais quando os seus direitos ou interesses legalmente protegidos são atacados ou ameaçados. Um dos novos meios que surgiu com a reforma do contencioso para assegurar essa tutela efectiva está consagrado no artigo 37, nº 2, alínea c) C.P.T.A., e traduz-se na admissibilidade de pedidos que tenham como objecto a condenação de algum particular ou alguma entidade administrativa à adopção ou abstenção de um determinado comportamento.

 

Com efeito, no anterior regime do contencioso administrativo (pré-reforma) existia como que um monopólio de reacção judicial ex post contra as actuações da Administração. A protecção judicial dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares estava dependente da prática de um acto lesivo por parte da Administração, e só após a prática deste comportamento, podiam os lesados recorrer à tutela judicial.

 

O art. 37 nº 2 alínea c) tem em vista impedir, de forma preventiva, que se pratiquem actos lesivos ilícitos por parte da Administração; pretende-se assim impedir esta prática através da emissão de uma ordem judicial no sentido de obrigar a Administração (ou um particular envolvido numa relação jurídico-administrativa) a abster-se de determinados comportamentos, podendo estes consistir na prática de um acto administrativo, na emissão de norma ou na execução de operações materiais.

 

Distinção deste meio em relação à tutela cautelar

 

A acção administrativa em análise distingue-se da tutela cautelar na medida em que se pretende uma decisão de mérito e uma resolução efectiva de um conflito jurídico; por sua vez, na tutela cautelar consegue-se apenas uma decisão temporária e instrumental face à questão suscitada.

 

Deve também distinguir-se a condenação à abstenção da intimação[1] para a protecção de direitos, liberdades e garantias, também consagrada na reforma do contencioso.

Apesar de ambos se dirigirem à garantia da tutela judicial efectiva, levando à imposição de deveres de abstenção e a pronúncias sobre o fundo da questão, a diferença reside no facto de a intimação só ser utilizada em situações em que é urgente a emissão de uma decisão pelo tribunal sobre o fundo da matéria, de forma a proteger um direito, liberdade ou garantia e não seja suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Por outro lado, a condenação à abstenção é um meio não restringido à tutela de direitos, liberdades e garantias e que pode ser conjugado com a tutela cautelar, como analisaremos mais adiante.

 

A opção pela acção administrativa comum

 

Como aponta o Professor Vasco Pereira da Silva[2], a disposição constante do art. 37 nº 2 c) afigura-se algo estranha, uma vez que “o legislador utiliza as expressões condenação e acto administrativo, o que resulta contraditório com o critério adoptado de delimitação de meios processuais”. De facto, como o Professor refere “a acção administrativa especial é o meio processual adequado para o controlo de actos e de regulamentos administrativos, enquanto que a acção administrativa comum é o meio adequado para o julgamento de contratos, de actuações informais e técnicas ou de operações materiais”[3]. Se a pretensão que o particular apresenta à jurisdição administrativa chocasse com o exercício do poder de autoridade da Administração ou com acto ou regulamento administrativos, a acção a interpor seria a especial, se não, seria a comum.

 

Este preceito inspirou-se na vorbeugende Unterlassungskage[4] (acção de abstenção), figura existente no direito processual administrativo alemão.

A Unterlassungsklage é reconduzida à allgemeine Leistungsklage[5], ou seja, ao equivalente germânico da acção administrativa comum, e não à Verpflichtungsklage ,o equivalente germânico à acção de condenação à prática do acto devido, ou à Anfechtungsklage (a acção de impugnação do acto administrativo).

Apesar de a divisão entre a Verpflichtungsklage e a allgemeine Leistungsklage ter como base a mesma divisão entre exercício ou não de poderes de autoridade, a doutrina justifica esta qualificação com o facto de aqui não estar em causa a impugnação de um acto, uma vez que não existe objecto impugnável, mas a condenação à realização de uma prestação de facto negativo[6], um non facere.

 

Para resolver este problema de “concurso” de meios processuais, o Professor Vasco Pereira da Silva defende uma interpretação sistemática do preceito, concluindo que só os pedidos de condenação à abstenção da prática de um acto administrativo podem ter lugar no âmbito da acção administrativa comum[7]. Isto decorre da inspiração germânica ainda que o legislador tenha ido um pouco além do modelo que serve de inspiração na medida em que alarga estas acções a actos administrativos, o que não se verifica no direito alemão e que redunda numa contradição com o critério de delimitação utilizado pelo nosso Código.

 

Assim, conclui o Professor Vasco Pereira da Silva que, de iure condendo, o meio processual adequado seria a acção administrativa especial.

 

O interesse processual qualificado como pressuposto

 

Exige-se com o interesse processual que o autor demonstre perante o tribunal a existência de uma situação de risco em que a probabilidade de ocorrer danos na sua esfera é suficientemente forte para justificar a possibilidade de interpor uma acção preventiva. No entanto, o C.P.T.A. não nos ajuda quanto ao conteúdo do interesse processual exigível neste caso.

A doutrina alemã faz depender, a condenação da Administração a não praticar um acto, da titularidade por parte do autor de um interesse processual qualificado[8]. É casuisticamente que devemos concretizar quais as situações de ameaça da prática de um acto administrativo lesivo que não se compadece com uma tutela meramente reactiva e exige uma tutela preventiva.

O Professor Mário Aroso de Almeida admite que o referido interesse qualificado existirá nas situações em que uma reacção a posteriori trará necessariamente danos irreversíveis. Estes casos podem ser por exemplo, a demolição de uma casa ou o encerramento de um estabelecimento.

Desta forma, a interposição de uma acção de condenação da Administração à abstenção exigiria um interesse qualificado e, portanto, não só se teria que preencher o requisito de interesse processual presente no art.º 39, mas também demonstrar que a espera pela prática do acto não era exigível ao cidadão. Isto poderia acontecer por a lesão já estar a ocorrer ou por a resposta fornecida pela tutela reactiva em conjunto com a tutela cautelar não serem suficientes para dar resposta à necessidade efectiva sentida[9].

 

A aplicação analógica do art.º 39 do C.P.T.A.

 

Para aferir do interesse processual nos casos de condenação à abstenção de comportamentos, a doutrina tem vindo a defender aplicação do art.º 39[10] que, a propósito das acções meramente declarativas ou de simples apreciação, estabelece a exigência da verificação de certos requisitos para o preenchimento do interesse em agir como pressuposto processual.

Assim, considera-se que não pode deixar de ser aplicável o artigo 39 às acções do artigo 37, n.º2, alínea c), in fine. Passamos assim a ter um regime legal como base para aferir da existência de interesse processual.

Neste caso, lendo o artigo 39 com as devidas adaptações, os pedidos de condenação à abstenção de comportamentos podem ser deduzidos por quem invoque utilidade ou vantagem imediata, para si, na declaração judicial pretendida, designadamente por existir uma situação de incerteza de ilegítima actuação da Administração, ou de fundado receio de que a Administração venha a actuar de forma lesiva baseada numa avaliação incorrecta da situação jurídica existente.

 

A não verificação dos pressupostos processuais

 

A acção administrativa comum segue como regime substantivo, o regime constante da lei processual civil. O preenchimento dos pressupostos é, portanto, averiguado ao abrigo do Código de Processo Civil.

A inexistência de interesse processual é uma excepção dilatória, uma vez que corresponde à falta de um pressuposto processual (artigo 576, n.º 2, do CPC). A frustração do preenchimento deste pressuposto implica, como a generalidade das excepções dilatórias, a absolvição do réu da instância (artigos 576, n.º 2, e 278, n.º 1, alínea e), do CPC).

O Professor Miguel Teixeira de Sousa[11] faz, no entanto, uma ressalva à aplicação literal deste preceito. Como o estabelecimento do pressuposto do interesse processual visa, entre outros objectivos, a protecção da contraparte e a economia processual, sempre que seja possível ao tribunal concluir pela improcedência da acção, pronunciando-se sobre a questão de fundo, deve fazê-lo em vez de se limitar a absolver o réu da instância. Se o pressuposto processual visa a protecção da contraparte não faz sentido absolvê-lo se com a improcedência da acção esta obtém um resultado que lhe é mais favorável, graças aos efeitos de caso julgado. Também o princípio da economia processual é melhor prosseguido. Esta ressalva é de aplicar também na acção aqui em questão.

 

Quanto ao prazo, nenhuma especificidade é exigida quanto à interposição desta acção. Como tal e visto que estamos no âmbito da acção administrativa comum, não haverá prazo.

 

Questão diferente já será saber qual o momento a que devemos dar relevância para efeitos de fim de admissibilidade de interposição desta acção, se a prática do acto, a notificação deste ou apenas a publicação. Sendo este, um meio processual criado para prosseguir a garantia de uma tutela judicial efectiva no sentido de total, ou seja, visando cobrir a tutela nos casos em que esta não é assegurada pelos outros meios, a solução preferível será a de: a acção deixar de ser admissível a partir do momento em que outra passa a ser. Esta solução também nos é imposta pela própria natureza da acção administrativa comum como acção subsidiária (art.º 37, n.º1).

 

Quando o acto é praticado durante a pendência da acção

 

Pode acontecer que durante a pendência da acção o acto que se pretende que a Administração não pratique, seja por esta praticado, isto por não ter sido decretado nenhum meio de tutela cautelar e a acção ainda não ter conhecido decisão final transitada em julgado. Nesse caso, gera-se uma situação de inutilidade superveniente da lide que tem como consequência a absolvição da instância. Isto porque, tendo o acto sido praticado, passamos necessariamente para o âmbito da acção administrativa especial, para uma acção de impugnação ou de condenação à prática do acto devido. Essa é uma das críticas ou fragilidades apontadas a esta acção.

 

Tutela Cautelar

 

O art. 112 nº2 f) do C.P.T.A. prevê expressamente a acção com vista a abstenção de uma conduta por parte da Administração. Como analisado no ponto anterior, o facto de não existir uma providência cautelar pode conduzir a que a Administração pratique o acto durante a pendência da acção. A possibilidade de tutela cautelar é, deste modo essencial porquanto permite, nestes casos, aos particulares paralisar a actuação da Administração evitando a continuação da lesão ou a inutilidade da sentença perante factos consumados.

 

Assim, para adoptar uma providência cautelar, tal depende do preenchimento dos critérios de decisão constantes do artigo 120. Tratando-se do artigo 112, n.º 2, alínea f), de uma medida conservatória, terão que se provar os requisitos do artigo 120, n.º 1, alínea b). A possibilidade de interposição de uma providência cautelar preliminar permite ao particular parar o decorrer do procedimento antes mesmo de propor a acção. Essa possibilidade pode ser muito útil nos casos em que já está a ser lesado ou quando o procedimento é especialmente complexo. Obstando também a que a Administração pratique o acto na pendência da acção.

 

Sentença e caso julgado

 

Tratando-se de uma acção que visa impedir certo comportamento, a sentença emitida pelo tribunal caracteriza-se por ser inibitória. Ou seja, a sentença é constituída por uma verdadeira ordem no sentido de obrigar a contraparte a abster-se de adoptar determinada conduta futura.

Ao obrigar à abstenção de determinado comportamento, a sentença está a impedir a Administração de actuar daquela forma. Como tal cumpre esclarecer quais são os limites do caso julgado, uma vez que a sentença não pode ser entendida como vinculando para sempre a Administração a não actuar daquela forma. Podem existir alterações no quadro de circunstâncias de facto ou de Direito que tornem aquela actuação admissível.

 

Os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram a sentença podem aqui relevar, na medida em que se há um esvaziamento posterior destes não fará sentido continuar a obrigar a Administração a não praticar aquele comportamento.

 

Também se deve entender, como o faz o Professor Mário Aroso de Almeida que a sentença terá sempre implícita uma cláusula rebus sic standibus[12], ou seja, o seu caso julgado terá como limites a manutenção das circunstâncias de facto e de direito. Se a lei mudar, se as condições de facto mudarem, aí, na medida da mudança, já não estaremos dentro do caso julgado. Quer-se apenas estabelecer os limites temporais[13] do caso julgado. A alteração de circunstâncias cria uma nova situação na qual a vinculação da Administração a não actuar de determinada forma pode deixar de fazer sentido.

 



[1] Cf. Artº. 109 do C.P.T.A.

[2] Vasco Pereira da Silva,   O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 449

[3] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 438

[4] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p.127

[5] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p.450

[6] Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, p. 773

[7] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p.454

[8] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 130

[9] Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos

Tribunais Administrativos, p. 207

[10] É o caso do Professor Mário Aroso de Almeida que defende tal solução no Manual de Processo Administrativo, do Professor Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise (p.474) e do Professor Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (p.184).

[11] Miguel Teixeira de Sousa, O interesse processual na acção declarativa, p.39.

[12] Como indica a Professora Isabel Alexandre na sua tese de doutoramento “A doutrina da cláusula rebus sic stantibus expressava, no direito comum, a ideia de que a manutenção de um contrato de longa duração depende da não alteração das circunstâncias que foram decisivas para a sua conclusão de um modo tal que o seu escopo principal não possa mais ser atingido, devendo, portanto, considerar-se subentendida nesses contratos uma cláusula desse teor;” esta doutrina foi trespassada para o processo civil e, como constatámos, consequentemente também para o contencioso administrativo.

Também no regime das providências cautelares, diz-nos a Professora que “indicia também que a alteração das circunstâncias deve poder repercutir-se tanto na decisão condenatória como na absolutória. Com efeito, o artigo 124º, n.º 1, do CPTA permite que a decisão tomada no sentido de adoptar ou recusar a adopção de providências cautelares seja revogada, alterada ou substituída na pendência da causa principal, com fundamento na alteração das circunstâncias inicialmente existentes.”

[13] Os limites temporais do caso julgado prendem-se com a possibilidade de consideração de factos ocorridos em momento posterior à data do encerramento da última discussão.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Raquel Dias às 15:50

Sábado, 07.12.13

Breve consideração sobre os meios de prova no Contencioso Administrativo, em específico o art.º 90 nº2 do CPTA

 

 

Regime anterior

 

Na anterior L.P.T.A. (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), no que respeita aos recursos contenciosos, funcionava uma dualidade de regimes probatórios[1].Assim, caso o processo seguisse a tramitação prevista no Código Administrativo ou no Regulamento do STA, a tramitação relativa à prova seria distinta. Se existisse um litígio que tivesse por objeto actos da administração locale portanto tramitasse de acordo como o Código Administrativo, os recursos contenciosos da administração local obedeceriam à elaboração de especificação e questionário quando subsistissem factos controvertidos, com a posterior abertura de uma fase de instrução, em que seriam admitidos quaisquer meios de prova, incluindo a testemunhal (art.º 845 e 847 do Código Administrativo)

 

Caso estivéssemos perante um litígio que envolvia a administração direta ou indirecta do Estado, os meios de prova estavam consideravelmente mais diminuídos na medida em que existia a regra da proibição de prova testemunhal, independentemente da respectiva competência contenciosa pertencer aos tribunais administrativos ou ao Supremo Tribunal Administrativo (art.º 12 e 25).Havia neste último caso, uma limitação considerável na admissibilidade de produção de prova, cingindo-se em muitos casos, à comprovação documental dos factos que necessariamente teria de ser obtida por via do processo instrutor e de quaisquer documentos juntos pelo recorrente ou que proviessem de diligências complementares efectuadas por iniciativa do relator art.º 56, 61 e 68 do Regulamento do STA.

 

Existia claramente uma diferenciação do regime probatório. Podem ser apontados variados factores[2] que expliquem esta dualidade probatória: a origem do acto praticado, melhor, a autoridade administrativa que tivesse praticado o acto recorrido (factor que também influenciava a distribuição da competência contenciosa entre tribunais) e a própria diligência processual que pretendia eximir os tribunais superiores dos inconvenientes que a admissão genérica da prova testemunhal, com a consequente necessidade de remessa do processo ao tribunal administrativo de 1ª instância para efeitos de instrução.

 

Regime Actual

 

O CPTA foi objecto de uma profunda alteração quanto à admissibilidade de meios probatórios, afastando, clara e inequivocamente, o regime que anteriormente estava vertido no art.º 12 da L.P.T.A. Uma breve análise do art.º 90 nº2 do CPTA permite-nos verificar precisamente esta “libertação de constrangimentos” quanto ao regime probatório através da remessa para o disposto na lei processual civil:

 

“ (…) Artigo 90.º Instrução do processo

 

2 - O juiz ou relator pode indeferir, mediante despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova quando o considere claramente desnecessário, sendo, quanto ao mais, aplicável o disposto na lei processual civil no que se refere à produção de prova. (…)”

 

Podemos então depreender que é admissível no âmbito da acção administrativa especial, a utilização de qualquer dos meios de prova que se encontram previstos no Código de Processo Civil, aí se incluindo tanto a prova documental, como a prova testemunhal, pericial ou por confissão de partes. Quanto à acção administrativa comum art.º37 e ss do CPTA, a remissão em bloco para o regime processual cível demonstra também a ampla possibilidade de utilização de regimes probatórios na tramitação desta acção.

 

 

 

 

 

Assim, neste novo contexto probatório, o art.º 90 nº2 do CPTA pretende abranger todo o leque de produção de prova colocando entraves a expedientes dilatórios.O juíz deve providenciar pelo  andamento regular e célere do processo, que já se encontrava consignada, em termos gerais, no art.º 265.º n.º1 do CPC, onde também se prevê a possibilidade de julgador afastar o que for dilatório.

 

A primeira conclusão que se impõe retirar face ao princípio da livre admissão de provas é que ele se torna aplicável a qualquer dos pedidos dedutíveis através da acção administrativa especial, independentemente do tipo de procedimento a que respeite o acto administrativo praticado, omitido ou recusado e da maior ou menor complexidade das formalidades a que se encontrevinculado. Nesta matéria, precisamos de recorrer ao CPA que regula, em termos gerais, o procedimento administrativo. As disposições do CPA são supletivamente aplicáveis aos procedimentos especiais, desde que não envolvam a diminuição de garantias art.º 2 nº7 in fine. Contudo, o CPA prevê princípios chave a que devem obedecer os trâmites, formalidades e actos de qualquer procedimento. Assim, a noção de especialidade não pode ser referida por contraposição a um procedimento tipo, mas será antes caracterizada pelo exercício de determinada competência que, enquanto tal, se encontra regulada em normas procedimentais próprias[3].

 

 

Outra conclusão diz respeito à averiguação oficiosa da Administração. Um dos princípios cruciais do contencioso administrativo que deve ter sempre aplicação em qualquer procedimento e mesmo nos procedimentos especiais, é aquele que se refere ao dever de averiguação oficiosa que em qualquer circunstância incumbe à administração.

Nos termos deste dispositivo mesmo que o interessado não faça prova do facto que alegue, uma vez que é aquele que alega o facto que tem o ónus de o provar art.º 342 nº1 do CC, a Administração continua a ter o dever de proceder a diligências instrutórias que permitam conduzir à justa decisão do caso.

 

Por sua vez, os factos que tenham servido de base à formação da Administração que culmine num determinado procedimento administrativo, são susceptíveis de ser arguidos de erro nos pressupostos de facto, quando se verifique não ter qualquer correspondência com a realidade, dando a possibilidade a que um particular, mediante o recurso a um tribunal administrativo, possa reagir contra o acto desfavorável mediante um pedido de anulação ou de condenação à prática de acto devido.

E é somente agora através dos diversos meios de prova admissíveis, em processo civil, a que o citado art.º 90 nº2 do C.P.T.A dá agora possibilidade, que será possível trazer ao processo jurisdicional as informações que permitam ao juíz tomar posição sobre a realidade dos factos quando eles se tornem controvertidos.

 

O tribunal administrativo terá sempre de exercer os seus poderes de pronúncia no respeito pelo princípio da separação dos poderes, regra essa demonstrada pelo art.º 3, n.º1 do CPTA Isso significa que os tribunais administrativos não se podem substituir às entidades públicas na formulação de valorações que, já por não terem carácter jurídico, mas envolverem a realização de juízos sobre a conveniência e oportunidade da sua actuação, se inscrevem no âmbito próprio da discricionariedade administrativa[4]. Mas há naturalmente exceções. Assim, será quando o que está em causa é a própria exactidão dos factos em que a Administração fundou a sua decisão para produzir um acto administrativo, visto que é esse um aspecto vinculado de toda e qualquer actuação administrativa que o tribunal está vocacionado para sindicar e que poderá, portanto, sindicar através dos meios de prova que lhe forem apresentados.

 

Concluímos no sentido de que o art.º 90 nº2 do CPTA ao admitir genericamente qualquer meio de prova, permitiu uma evolução clara no sentido da descoberta da verdade material e da tutela das posições jurídicas dos particulares.

 

Bibliografia consultada:

 

 

  • Carlos Alberto Fernandes Cadilha, A prova em contencioso administrativo- anotação ao Ac. do TCA Sul de 14.11.2007, P. 2982/07 in Cadernos de Justiça Administrativa nº 69 Maio/Junho 2008;

 

  • Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., revista e actualizada, Almedina, 2005;
    • Mário Aroso de Almeida/ Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 3ª edição, Almedina, 2007;

 

  • Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves/João Pacheco Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª ed, Coimbra;

 

 

  • Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2005.

 

 

 

 

Trabalho realizado por Francisco Rodrigues nº 20904; subturma 4; 4º ano



[1] Carlos Alberto Fernandes Cadilha, pag 41, ob cit;

[2] Carlos Alberto Fernandes Cadilha, pag 44, ob cit;

[3] Mario Esteves de Oliveira/Pedro Costa Gonçalves/João Pacheco Amorim, pag 78-79, ob cit;

[4] Carlos Alberto Fernandes Cadilha, pag 44, ob cit;

 

Autoria e outros dados (tags, etc)

por contenciosoadmin às 15:42

Sábado, 07.12.13

Breves considerações sobre o art.100º/2 CPTA

 

O artigo em causa insere-se no âmbito do contencioso pré-contratual. Caracterizando-se por ser um processo urgente, destaca-se como seu principal objectivo, a resolução célere de quaisquer problemas ou dúvidas quanto à legalidade do processo pré-contratual que possam afectar o contrato. Deste modo, resolução dessas problemáticas deverá acontecer, preferencialmente, antes da celebração do contrato de modo a evitar que a Administração fique vinculada a um contrato com vícios.

Segundo o artigo 100º/1 CPTA este meio processual destina-se à impugnação de actos administrativos relativos à formação de contratos porém, estabelece o mesmo que só terá aplicação quando em causa estejam certos tipos de contratos, nomeadamente, contratos de empreitada e concessão de obras públicas, assim como contratos de prestação de serviços e fornecimento de bens.

Por sua vez, o nº2 do presente artigo alarga o âmbito de aplicação do meio processual, estabelecendo a possibilidade de impugnação de documentos concursais, dando desde logo o exemplo do caderno de encargos.

 

Ora, as nossas considerações vão no sentido da (eventual) admissibilidade neste artigo, de uma figura idêntica à aceitação do acto administrativo, prevista no artigo 56.º CPTA.

Temos aceitação do acto como uma manifestação de concordância com o conteúdo do acto, autónoma de quais as razões que levaram o sujeito a aceitar a situação em causa. Sendo que a mesma pode ser expressa ou tácita, regulando o 56º/2 que haverá aceitação tácita se em causa estiver um “facto incompatível com a vontade de impugnar”.

Com isto, e atendendo a que, com a apresentação de propostas, estão os concorrentes implicitamente a aceitar aquele caderno de encargos, vem levantar-se a questão de uma possível interpretação restritiva do artigo 100º/2 para que, nos permitisse ler o artigo da seguinte forma “Também são susceptíveis de impugnação directa, ao abrigo do disposto na presente secção, o programa, o caderno de encargos ou qualquer outro documento conformador do procedimento de formação dos contratos mencionados no nº anterior, designadamente com fundamento na ilegalidade das especificações técnicas, económicas ou financeiras que constem desses documentos”desde que, não tenha existido aceitação desse documento concursal ou, havendo, tenha o particular formulado uma reserva.  


Como argumentos contra esta posição prevêem-se, desde logo, o facto de o legislador não ter regulado expressamente essa figura no âmbito deste meio processual. 

Outro contra-argumento será, possivelmente, a existência do artigo 51º/3 CPTA: “Salvo quando o acto em causa tenha determinado a exclusão do interessado do procedimento e sem prejuízo do disposto em lei especial, a circunstância de não ter impugnado qualquer acto procedimental não impede o interessado de impugnar o acto final”. Quanto a este cabe refutar afirmando que, a aceitação de um caderno de encargos faria somente a impossibilidade de impugnação desse caderno de encargos, não pondo assim em causa a possibilidade de impugnação do acto final.

Uma outra ideia que poderá surgir está relacionada com a prática social que se vive actualmente nos procedimentos da contratação pública. Ora, não se pode recusar a figura da aceitação neste artigo defendendo que a mesma é inexequível porque, na prática, nenhum particular reclama de vícios no caderno de encargos logo no início, ainda que os conhecendo, por ter receio das consequências, mais propriamente das possíveis represálias de não ser escolhido precisamente por ter recorrido logo para tribunal.

Perante uma aplicação da figura da aceitação neste regime, o argumento supramencionado não releva, pelo seguinte: perante uma situação de um concorrente que quer proceder à apresentação de uma proposta, mas sabe que o documento concursal possui erros, existirá uma de três vias possíveis: um – concorrente apresenta a proposta e nada diz quanto aos erros; dois – concorrente apresenta a proposta e reclama logo nessa sede dos erros do documento; três – concorrente apresenta proposta mas estabelece uma reserva sob o direito de poder impugnar o documento ainda que esteja a submeter a sua proposta.

Quando um concorrente elabora a sua proposta, fá-lo de acordo com o caderno de encargos. Ora, se faz a proposta conforme os termos do caderno significa que está a aceitar esses termos, ainda que implicitamente. Assim sendo, não poderá depois impugnar o documento com o qual, à partida, até concordou; sob pena de existirem situações em que concorrentes não reclamam quando sabem do erro e só o fazem posteriormente porque não foram os escolhidos para a adjudicação. Ora, a meu ver, esta atitude demonstra uma falta de lealdade para com os outros concorrentes.

Atente-se desde logo em duas situações: um concorrente que redige a proposta mas alerta a Administração para a existência de erros no documento concursal e, um outro concorrente que apresenta a proposta mas nada diz, reclamando dos erros existentes no documento concursal após a decisão de que não foi escolhido. Qual o concorrente que merecerá mais protecção? O primeiro que alertou a Administração e zelou pelo interesse público e pelo principio da transparência e da legalidade, mas que poderá ter sido mal interpretado pela Administração e por isso não adjudicado ou, o segundo concorrente que sabe dos erros mas guarda tal conhecimento na esperança de ganhar pontos com essa falta de honestidade mas, tendo um plano de reserva - para o caso de não adjudicado - que consiste na interpelação da Administração do erro deles, do qual ele sempre soube, que perturbará todo o procedimento. 

 

Por fim, cabe referir que, uma vez que o artigo 100º/2 visa limitar a discricionariedade da Administração na fase procedimental e de formação do contrato, para que desse modo se possa concluir com certeza pela legalidade dos contratos públicos vigentes e de que a feitura dos mesmos se regeu por princípios constitucionalmente consagrados, como o princípio da igualdade, transparência e prossecução do interesse publico.

Concluindo, o argumento anteriormente referido parece ser o único capaz de nos demover da aceitação de uma leitura do 100º/2 conforme o 56º/2 CPTA, desde logo porque se demonstra crucial controlar a discricionariedade da Administração. Por outro lado, demonstra-se necessário proteger a Administração de particulares mal-intencionados que só colocam em causa os documentos concursais e assim, o procedimento por suas propostas terem sido excluídas ou preteridas. 



Autoria e outros dados (tags, etc)

por Mariana Pereira às 00:15

Sábado, 07.12.13

Breves considerações sobre o art.100º/2

.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Mariana Pereira às 00:14

Sexta-feira, 06.12.13

Decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa

TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA

 

Proc. nº. 111/666YZ

Proc. nº 111/666AB

Acção Administrativa Especial de Impugnação de normas

 

Data: 6-12-13

Autores: Ministério Público; Noé das Arcas

Réus: Ministério da Agricultura e do Mar; Companhia Carris de Ferro de Lisboa, SA.

 

Assunto: Sentença

 

Lisboa, 6 de Dezembro de 2013-12-06

 

A oficial de Justiça,

 

 Ana Arial Calibri

 

 

 

Do Pedido do Ministério Público contra o Ministério da Agricultura e do Mar

 

Proc. nº 111/666YZ

I – Relatório

 

O Ministério Público veio interpôr uma acção administrativa especial contra o Ministério da Agricultura e do Mar. Contra a Ré, o Autor formula um pedido de declaração de ilegalidade do Regulamento do Animal Doméstico.

A acção destinou-se a efetiva declaração de ilegalidade do Regulamento do Animal Doméstico (RAD), aprovado pela Portaria n.º 313/2013.

            Alega o Autor, Ministério Público, em primeira mão, que o regulamento deveria ser impugnável, por se encontrar viciado de incompetência absoluta, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alínea b) C.P.A., considerando que à luz do art.º 16-A/1, do DL 86-A/2011, com as alterações introduzidas pelo DL 119/2013, de 23 de Agosto, que seria competente o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e da Energia. Alega igualmente que o regulamento seria nulo pelo facto de não ter sido acompanhado de nota justificativa fundamentada (art.º 116.º C.P.A), tratando-se igualmente de um regulamento que impõe sujeições deveres e encargos, devendo dar lugar à audiência dos interessados (art.º 117 CPA), pelo facto de não verificarem qualquer razão de interesse público para preterir a mesma, considerando estar em causa o princípio da imparcialidade, reforçando a ideia de que numa fase prévia à aprovação do regulamento, deveria o seu projeto ter sido submetido a apreciação pública, por força dos arts. 118.º CPA e art.º 267.º, n.º 5 CRP, sendo que a não verificação daqueles pressupostos gera a nulidade do respectivo regulamento. Acresce ainda o facto de o A. considerar que o regulamento consubstancia uma intromissão desproporcionada na vida privada dos cidadãos, gerando uma violação do art. 266.º, n.º 2 CRP e do art.º 5.º, n.º 2 CPA.

Por sua vez, o Réu, o Ministério da Agricultura e do Mar, defendendo primeiramente que seria absolutamente competente de acordo com o artigo 17.º, n.º 2 da Lei Orgânica do Governo (LOG), na medida em que o Ministério da Agricultura e do Mar compreende a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), remetendo para o artigo 16.º-A DL 7/2012 de 17 de Janeiro, demonstrando que a DGAV se encontra sobre a alçada do Ministério da Agricultura e do Mar, sendo este absolutamente competente em razão da matéria.

Reconhece que não consta do Regulamento uma nota justificativa fundamentada (art. 116.º CPA), demonstrando no entanto que tal não obsta à validade do RAD, visto que o seu efeito será de mera irregularidade, suscitando meras consequências disciplinares, demonstrando que “Os regulamentos irregulares produzem os seus efeitos principais como se fossem legais, mas a irregularidade por acarretar consequências disciplinares para o titular do órgão com competência regulamentar”(V. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 269-270). Demonstra igualmente que houve um suprimento da audiência dos interessados (art.º 118 CPA), por força de razões de interesse público, dada a urgência do processo motivada pela estirpe A-378, articulando por isso com o regime do artigo 103.º, n.º1, alínea a) CPA.

 

 

II – Fundamentação de Facto

II – A) Factos Provados

 

Com interesse para a causa, consideram-se provados os factos seguintes:

 

  1.  A organização ambientalista “Amor Animal” (ONG), pessoa colectiva n.º 639885302, com sede na Rua Zoológico, nº4, 1740-107, Lisboa, veio solicitar ao Ministério Público a sua intervenção de modo a requerer a impugnação do Regulamento do Animal Doméstico, por já ter sido alertada quanto à ambiguidade das questões por este levantadas.
  2.  O Ministério da Agricultura e do Mar aprovou no dia 1 de Outubro de 2013 o Regulamento do Animal Doméstico
  3.  O Ministério da Agricultura e do Mar não ouviu as entidades incumbidas de representar os interesses em causa.

 

II- B) Motivação da decisão de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento. Em particular, o Tribunal baseou a sua convicção relativamente aos factos considerados como demonstrados, na apreciação conjugada do depoimento das testemunhas e, de acordo com as regras da experiência comum.

A R. procedeu efetivamente à realização de estudos de base-técnico científica, recorrendo a pareceres de peritos na área da higiene e saúde veterinária, facto que foi dado como provado pelo Tribunal através dos depoimentos das testemunhas Cristiano Reinaldo Aveiro, Frederica Hayek, Emanuel Kant e Carlota Mil-Cães, todas arroladas pelo A., cujos depoimentos, não obstante de criticarem o conteúdo do estudos em causa, reconheceram a sua existência. De salientar a importância do depoimento da Ministra Assunção Pistas, arrolada oficiosamente, que demonstrou tanto a origem dos respectivos estudos, bem como todas as fases que antecederam a sua produção. Importará igualmente observar o documento 2 anexo à contestação, no qual constava um estudo elaborado no âmbito daquela matéria, revelando-se as testemunhas extremamente úteis para corroborar o respectivo conteúdo.

No seguimento da aplicação do Regulamento em causa, a limitação do número de animais que poderão habitar nas frações autónomas de prédios urbanos poderá acarretar determinadas consequências, nomeadamente, o abandono dos animais.

As declarações prestadas pela testemunha Carlota Mil-Cães, pareceram-nos credíveis na parte em que demonstrou os efeitos actuais que já se verificam quanto ao abandono dos animais, enumerando os vários casos que têm sido reportados, levando o Tribunal a aferir que tal situação estará intrinsecamente ligada ao Regulamento em questão.

Ficou provado que, durante o processo da feitura do regulamento, se verificava uma situação de grave disseminação do vírus A-378, o que ficou comprovado pelo documento entregue pela R. em sede de audiência, na qual consta o número de casos registados com a estirpe A-378, tendo esse documento sido corroborado pela Ministra Assunção Pistas. Deverá no entanto ter-se em conta que, dado os depoimentos das testemunhas Cristiano Reinaldo Aveiro, Frederica Hayek, Emmanuel Kant e Carlota Mil-Cães, devido às funções que exercem, e ao conhecimento de facto que a priori terão da matéria em causa, não foi permitido ao Tribunal concluir se a estirpe em análise pode ou não contagiar seres humanos.

Ficou igualmente provado que a Administração não dispõe dos meios necessários para proceder ao controlo e fiscalização rigorosos para garantir o cumprimento do Regulamento, manifestando-se bastante relevante o depoimento da Associação “Amor Animal”, representada pela sua Presidente Ana Raquel Martins Gonçalves, cujas considerações foram tidas como credíveis e fundamentadas, ao demonstrar que, para garantir a aplicação do Regulamento, seria necessária a contratação de um número duplamente superior ao actual efectivo da Administração, levando o Tribunal a concluir no sentido acima indicado.

 

III – Fundamentos de Direito

                                                        

A acção especial administrativa de impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão, prevista nos arts. 72.º ss. CPTA, consubstancia a “criação de mecanismos processuais para controlar a validade dos regulamentos e proteger os direitos dos indivíduos, por eles afectados” sendo “aplicável a todas as actuações jurídicas gerais e abstractas, ou que possuam apenas uma dessas características, emanadas de autoridades públicas ou de particulares que com elas colaborem, no exercício da função administrativa” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 414-415). Para a ação aqui em análise, será igualmente relevante dar nota de que “a invalidade do regulamento pode resultar da violação das disposições constitucionais – uma vez que as normas e os princípios da lei fundamental integram a noção ampla de legalidade (…) -, e esta pode ser conhecida através do processo de impugnação de normas (…). Tratar-se-á, nesse caso, de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas administrativas (artigo 280.º da Constituição), que é realizada pelo Tribunal Administrativo competente” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pp. 427-428).

Observando a Lei Orgânica do Governo (alterada pelo DL 119/2013), nomeadamente o artigo 17.º, n.º 2, que dispõe: “O Ministério da Agricultura e do Mar compreende os serviços, organismos, entidades e estruturas identificados no Decreto-Lei n.º 7/2012, de 17 de janeiro, sem prejuízo das transferências para o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia nos termos do artigo 16.º-A”, remetendo por isso para o Decreto-Lei n.º 7/2012 de 17 de Janeiro, que prevê no seu artigo 4.º, n.º 1 al. d) e art.º 13.º a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), sendo que uma das suas competências, insere-se na matéria do regulamento em análise, não tendo sido verificada a transferência deste serviço para a esfera do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia nos termos do art.º 16-A, pelo que, o Ministério da Agricultura do Mar seria claramente competente em razão da matéria, não sendo procedidos quaisquer argumentos que coloquem em causa a competência absoluta em razão da matéria.

Quanto à ausência de nota justificativa fundamentada, que viola o disposto no art. 116.º CPA, é claro que a sua violação não possuirá como consequência a nulidade do regulamento, mas apenas a sua irregularidade “pelo carácter meramente interno da formalidade preterida” (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 269), não obstante de poder gerar determinadas consequências disciplinares para o titular do órgão com competência regulamentar, não sendo no entanto fundamento para julgar da ilegalidade do regulamento.

No caso em análise foi igualmente verificada a ausência da audiência dos interessados (art.º 117 CPA), tendo o Ministério da Agricultura e do Mar arguido no sentido de que preteriu essa fase do procedimento regulamentar, por razões de interesse público. Ora, a lei configurou a audiência dos interessados como obrigatória apenas nos procedimentos que visem a adopção de regulamentos desfavoráveis para os seus destinatários, devendo o órgão com competência regulamentar ouvir as entidades representativas dos interesses afetados pelo regulamento, sendo que a audiência só não terá lugar se ocorrerem razões de interesse público devidamente fundamentadas, ora, a lei não densifica essas razões, devendo ser efetuada uma articulação com o art.º 103.º CPA. Verificando o art. 103.º CPA, e tendo em conta o caso em análise, importa ter em conta que a audiência dos interessados é um instituto concretizador de um princípio constitucional, logo, e pela sua sublime importância, “só pode considerar-se existir urgência se a decisão final tiver que ser tomada em prazo incompatível com a duração mínima da audiência dos interessados, que é de oito dias (art.º 102.º, 1 CPA)” (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 137). Analisando o caso concreto, observamos que esta fase procedimental não foi observada, e que, apesar do número crescente da estirpe A-378, considera o Tribunal que o prazo de oito dias para audiência dos interessados seria razoável e de extrema relevância para assegurar a prossecução do interesse público, tendo tal situação como consequência a invalidade do regulamento em análise, sendo de sublinhar no entanto que “a falta de audiência dos interessados não gera a invalidade da decisão final quando (…) estando em causa uma conduta vinculada, o Tribunal apure que o acto não padece de qualquer outro vício e conclua que a decisão administrativa não poderia ter sido outra que não aquela que foi efetivamente tomada” (Ac. STA, 26/4/2006, Proc. 01275/05), sendo certo que a violação de um princípio constitucional (art.º 267.º, n.º 5 CRP) não poderá nunca ser visto como mero vício, sendo que esta análise será colmatada posteriormente ao próximo ponto.

Naquilo que concerne à violação do princípio da proporcionalidade (art.º 5.º, n.º 2 CPA e art.º 266.º, n.º 2 CRP), importa primeiro reter que este princípio é aquele que possui o mais apurado parâmetro de controlo da atuação administrativa ao abrigo da margem de livre decisão, sendo comummente como um princípio que se desobra em três categorias (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I; Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I), a saber: a categoria da adequação, que proíbe a adopção por parte da administração de condutas inaptas ao fim que pretendem prossecuir; a categoria da necessidade que proíbe a adoção de condutas administrativas que não sejam indispensáveis para a prossecução do fim que se pretende atingir; e a categoria da razoabilidade, que proíbe que os custos da actuação administrativa na solução de determinado caso sejam superiores aos benefícios recolhidos. Observando o caso em análise, poderia ser discutido o critério tanto o critério da adequação, dado que, como foi acima verificado, não foi concretizada a possibilidade de contágio da estirpe A-378 para os seres humanos, estando igualmente em causa a dimensão da razoabilidade, que foi densificada, sendo o seu controlo efectuado através da figura do erro manifesto de apreciação, que se verifica quando a administração proceda a uma qualificação errónea de determinada realidade fáctica (no caso, a propagação da estirpe A-378) que resulta no facto de “nem o erro poder ser coberto pela margem de livre decisão nem a conduta administrativa, com base no princípio da separação de poderes se pode considerar como imune ao controlo jurisdicional” (Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I), ora, no caso concreto, e tendo em conta a natureza da matéria regulada, não ficou demonstrada a necessidade de tal regulação, nem concretizadas quais as verdadeiras implicações da estirpe em causa, e que, segundo a Ré, a motivou à elaboração do RAD.

Da exposição efectuada acima, será possível concluir que o Regulamento em análise viola o princípio da proporcionalidade (art.º 5.º, n.º 2 CPA e art. 266.º, n.º 2 CRP) e preteriu ilegalmente a audiência dos interessados, violando o disposto no art.º 117.º CPA e 267.º, n.º 5 CRP.

 

 

IV - Decisão

         Face a tudo o que atrás se disse e considerando as normas legais citadas, julga-se procedente a presente acção e, em consequência: declara-se a ilegalidade com força obrigatória geral do Regulamento do Animal Doméstico (aprovado pela Portaria n.º 313/2013).

 

 

Proc. Nº111/666AB

 

I- Relatório do litígio que envolve o autor e o Ministério da Agricultura e Mar

 

Noé das Arcas, melhor identificado nos autos, veio interpôr, nos termos dos artigos 46.º e ss do C.P.T.A., ação administrativa especial, na modalidade de impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão contra o Ministério da Agricultura e do Mar (melhor identificado nos autos) e contra a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A. Contra a primeira Ré foram cumulados dois pedidos, o primeiro visou a desaplicação da norma e declaração da ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto relativo ao regulamento do "animal doméstico" aprovado pela portaria n.º 313/2013.O segundo pedido consiste na condenação da Administração Pública ao pagamento de uma indemnização no valor de 10.000€

Contra a segunda Ré, a Companhia Carris de Ferro de Lisboa, S.A, formulou duas pretensões, cumulando-as: uma, requerendo a abstenção da conduta da Ré CC. S.A., com base no art. 37/3 do CPTA; outra, referente ao ressarcimento de danos, no valor de 10.000€, causados por um acidente com um eléctrico da referida Companhia, e, bem assim, por dispêndios que teve pela necessidade de adoptar outro meio de transporte.

 

Vejamos, em síntese, o que o Autor alegou no articulado.

 

Primeiro, quanto ao pedido de desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto nos termos do art.º 73/2 C.P.T.A.

O autor alega quatro inconstitucionalidades de que padeceriam o dito regulamento. Alega a inconstitucionalidade formal do “regulamento do animal doméstico” aprovado pela portaria 313/2013 de 22 de Outubro por falta de indicação expressa de lei habilitante. Alega, em segundo lugar, a inconstitucionalidade do normativo por constituir violação ao direito fundamental ao ambiente, nomeadamente ao art.º 66 da CRP. O regulamento estaria viciado por inconstitucionalidade material, uma vez que o nº2 do artº1 e o art.º 8 do regulamento em análise representariam uma clara e inequívoca violação do direito fundamental de todos os cidadãos ao ambiente. Em terceiro lugar, alega a inconstitucionalidade material do regulamento por violação do direito fundamental à integridade pessoal. Em causa estaria o art.º 12 do mesmo regulamento. Por último, alega a inconstitucionalidade do dispositivo, no seu art.º 12, pois violaria o direito à autodeterminação da imagem exterior.

 

Segundo, quanto ao pedido de indemnização cível. No entender do autor, verifica-se um caso de responsabilidade civil extracontratual por parte da Administração. Para tanto, invoca os dispositivos do art.º 483 do Código Civil e aos artigos 7.º e 8.º da Lei nº 67/2007 referente à responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades Públicas.

 

Vejamos, sumariamente, a defesa da Ré Ministério da Agricultura e do Mar.

 

A Ré alega a aprovação do regulamento com norma habilitante prévia, norma esta, que na sua perspetiva, foi objeto de retificação da norma habilitante, publicada, em data posterior, em Diário da República. Nega a existência de danos na esfera jurídica do autor, fruto da aprovação do regulamento, bem como a inexistência de nexo causal entre o despedimento do Autor e a elaboração do regulamento pelo ministério. Defende a inexistência de violação, por parte do regulamento ora em análise, do direito fundamental do autor ao ambiente, à integridade pessoal e à imagem.

 

Atentemos de forma sumária à defesa apresentada pela Ré Companhia Carris de Ferro de Lisboa, SA.

A Ré CC S.A. defendeu-se, afirmando que apenas cumpria o regulamento, estando a sua acção em conformidade com as exigências legais, e negando a envolvência no acidente alegado pelo autor.

 

II- Saneamento

 

A instância mantém-se válida e regular.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

 

III- Dos Factos Provados relativamente à pretensão do Autor contra a Ré Ministério da Agricultura e do Mar

 

 

Tal como constou do despacho saneador e com relevância para a decisão da presente causa ficaram provados os seguintes factos:

 

1) O autor habita na Rua Serpa Pinto, nº 15, 3º Dto., fração autónoma de duas assoalhadas e com uma cascata.

 

2) No dia três de Novembro de 2013, o autor foi impedido de entrar no elétrico 28, carreira assegurada pela Ré, Carris, S.A.

 

3) O autor transportava consigo, no momento em que pretendia entrar no elétrico, dois cães.

 

4) O condutor do elétrico, João Galhofinho, impediu o autor de entrar no dito meio de transporte, justificando tal conduta com a aplicação do novo regulamento dos animais domésticos.

 

5) O autor caiu junto do elétrico, sofrendo alguns danos.

 

6) O autor foi despedido do seu trabalho com base em faltas injustificadas.

 

 

IV- Decisão sobre a Matéria de Facto quanto à pretensão do Autor contra a Ré Ministério da Agricultura e do Mar.

 

No âmbito da fase de instrução realizada no dia 28 de Novembro de 2013 tendo em vista, nos termos do art.º 513 do C.P.C a produção da prova dos factos controvertidos ou necessitados de prova, foram dados como provados os seguintes factos constantes da base instrutória.

 

7) O Autor habita com 4 macacos, 4 gatos, 4 cães, 4 periquitos, 4 araras, 4 hamsters, 4 tartarugas, 4 cobras de água, 4 lagartos, e um conjunto de insetos.

 

8) O condutor do elétrico. o Sr. João Galhofinho, invocou diferentes motivos para vedar a entrada do autor no dito meio de transporte. Assim, não foi somente o cumprimento da circular interna da empresa que proibia tal conduta que pesou na decisão do Sr. João Galhofinho. A sua animosidade relativamente a animais domésticos, provada por testemunhas oculares arroladas pelo Autor e não contraditas pela Ré, foi também determinante para impedir o autor de entrar no dito transporte.

 

9) O autor desenvolveu uma depressão nervosa depois de tomar conhecimento da aprovação do regulamento. Tal como foi provado, pelo depoimento da testemunha Américo Freud. Depoimento este, que não foi contraditado, pela parte contrária.

 

10)O condutor do elétrico, Sr. João Galhofinho, impediu o autor de entrar no dito meio de transporte, justificando tal conduta com a aplicação do novo regulamento de animais domésticos.

 

 

Não se logrou provar que:

 

11) Os cães com quem o autor, se fazia acompanhar, no momento em que pretendia entrar no elétrico, no dia 3 de Novembro de 2013, eram de pequeno porte.

 

12) Os cães eram transportados para caixas próprias para o efeito.

 

13) Os cães estavam açaimados, quando o autor, pretendeu entrar no elétrico.

 

14) O autor só estava acompanhado pelos cães.

 

15) O elétrico se encontrava próximo do limite da sua capacidade de utilização.

 

16) Outros utentes procuravam entrar na carreira, ao mesmo tempo que o autor.  

 

17) Durante o restante mês de Novembro, foi o autor impedido de entrar nos transportes da Carris porque se apresentou com animais em condições que não permitiam a sua circulação em meios de transportes públicos.

 

18) O autor teve com isso despesas económicas extraordinárias por ter recorrido a outros meios de transporte.

 

19) O inferior desempenho laboral foi também causa do despedimento.

 

20) A circular interna da Carris determinava que ninguém poderia entrar nos seus meios de transporte acompanhado de animais.

 

 

V- Do Direito relativamente à pretensão do Autor contra à Ré Ministério da Agricultura e do Mar

 

Assentes os factos, cumpre aplicar-lhes o Direito.

 

Vejamos então.

 

Primeiro, quanto ao pedido de desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto nos termos do art.º 73/2 C.P.T.A.

 

O autor alega quatro inconstitucionalidades de que padeceriam o dito regulamento. Alega a inconstitucionalidade formal do “regulamento do animal doméstico” aprovado pela portaria 313/2013 de 22 de Outubro por falta de indicação expressa de lei habilitante. Alega, em segundo lugar, a inconstitucionalidade do normativo por constituir violação ao direito fundamental ao ambiente, nomeadamente ao artigo 66 da CRP. O regulamento estaria viciado por inconstitucionalidade material, uma vez que a aplicação artº1 nº2 e o art.º 8 do regulamento em análise representaria uma clara e inequívoca violação do direito fundamental de todos os cidadãos ao ambiente. Em terceiro lugar, alega a inconstitucionalidade material do regulamento por violação do direito fundamental à integridade pessoal. Em causa estaria o art.º 12 do mesmo regulamento. Por último, defende que o mesmo artigo padece ainda de inconstitucionalidade, pois violaria o direito à autodeterminação da imagem exterior.

 

Como a doutrina tem apurado[1] a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral pode, basear-se na eventual inconstitucionalidade da norma impugnada- tal como se poderia basear na sua inconstitucionalidade da norma o pedido da sua apreciação incidental. No contencioso de impugnação de normas regulamentares, o juiz não está, entretanto, limitado, na sua apreciação, pelos argumentos que possam ser invocados contra a sua norma ou normas impugnadas, podendo decidir “ com fundamento na ofensa de princípios ou normas jurídicas diversos daqueles cuja violação haja sido invocada” art.º75 C.P.T.A.

 

Vejamos detalhadamente cada inconstitucionalidade invocada pelo autor. Primeiro, a inconstitucionalidade formal.

 

O Tribunal Constitucional já se pronunciou inequivocamente que, de acordo com o disposto no art.º 115º da Constituição da República Portuguesa, os regulamentos - todo e qualquer regulamento, independentemente do órgão ou autoridade donde tiverem emanado - devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, sob pena de padecerem de inconstitucionalidade formal, por desrespeito do citado preceito constitucional.  Assim, no caso em análise, o que existiu não foi a aprovação de um regulamento sem norma habilitante prévia, mas a omissão da citação da norma habilitante. Ora, a inconstitucionalidade por falta de citação de lei habilitante gera um vício meramente formal, não existindo preceito legal que o sancione com a nulidade (o art. 3º, n° 3 da C.R.P. menciona a validade das leis e dos demais actos sem distinguir entre nulidade e anulabilidade). Deste modo, o argumento da inconstitucionalidade formal de que padeceria o dito regulamento não colhe.

 

Analisemos a questão da violação do direito ao direito ao ambiente.

 

Como refere Carla Amado Gomes “Os bens ambientais naturais merecem do Estado uma protecção activa, constituindo a sua defesa e preservação uma tarefa indeclinável (cfr. os artigos 9º/e) e 66º/2 da CRP). O ambiente, nesta dimensão objectiva, reveste um valor na equação ponderativa do interesse público, obrigando por vezes a sua tutela a uma ponderação no contexto de outros valores constitucionalmente protegidos (v.g., património cultural, saúde pública) que há de obedecer a critérios de necessidade, adequação e proibição do excesso (proporcionalidade) ”Ora, no que nos interessa, não foi ultrapassada qualquer barreira de excesso ou de adequação com a aprovação do dito regulamento. Por outro lado, não logrou o Autor provar qualquer ingerência ilícita na sua esfera feita pela norma regulamentar, cuja tutela pertença ao direito ao ambiente. Este argumento não procede.

 

Analisemos a violação do direito fundamental à integridade pessoal.

 O autor alega que a aplicação do regulamento no seu art.º 12 levará ao corte do cabelo do dono e do seu animal. Ora, o art.º 12º do regulamento do animal doméstico é inadmissível. A integridade física das pessoas é inviolável, como dispõe o artigo 25.º/1 da Constituição da República Portuguesa, constituindo esse direito à integridade pessoal um dos direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos constitucionalmente consagrados, como decorre da sua inserção sistemática no texto constitucional português, com as garantias daí inerentes previstas na Lei Fundamental, desde logo as consagradas nos artigos 16.º, 18.º e 19.º da Constituição da República Portuguesa. Conforme ensinam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à integridade física consiste, primeiro que tudo, num direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo, por meios físicos, sendo certo que tal direito, enquanto organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, goza de proteção absoluta, não podendo ser afetado mesmo em situações de suspensão de direitos fundamentais, na vigência de estado de sítio ou de emergência, como dispõe o artigo 19.º/6 da Lei Fundamental. Assim, a norma em causa atenta contra o bem jurídico, integridade física do autor, pelo que deve ser desaplicada. Esta ingerência ilícita na esfera do particular consubstancia um facto danoso justificativo da  declaração de ilegalidade com força obrigatória geral do Regulamento do Animal Doméstico (aprovado pela Portaria n.º 313/2013).

 

Analisemos a dita violação do direito à imagem.

 

O direito à imagem é um direito constitucionalmente protegido no citado n.º 1 do artigo 26.º da Constituição e, de acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira (Ob. Cit., 467) “tem um conteúdo assaz rigoroso, abrangendo, primeiro, o direito de definir a sua própria auto-exposição, ou seja, o direito de cada um de não ser fotografado, nem de ver o seu retrato exposto em público sem seu consentimento (…); e, depois, o direito de não o ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel”. Assim, o autor é titular indiscutível de direito à imagem. Direito à imagem que fica claramente em risco com as normas do dito regulamento, na medida em que estas, no seu art.º 12 e ss, constituem uma grave ofensa para a esfera jurídica do autor.

 

Em suma, não procede o pedido de desaplicação da norma pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto, mas antes é declarada  a ilegalidade com força obrigatória geral do Regulamento do Animal Doméstico (aprovado pela Portaria n.º 313/2013).

 

Vejamos agora o pedido de indemnização cível.

 

Comecemos pelo pedido de desaplicação da norma regulamentar com efeitos circunscritos ao caos concreto. De facto, o art.º 483 do Código Civil e ao artigo 7.º e 8.º da Lei nº 67/2007 referente à responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades Públicas, prevêem mecanismos de imputação de responsabilidade por factos ilícitos. Entre nós pode ler-se no art.º 483, n.º 1 do Código Civil o princípio geral atinente à responsabilidade por factos ilícitos: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. No caso em apreço, estava em questão se o Ministério da Agricultura e do Mar responderá pelas ações da Ministra titular do cargo. O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei 67/2007, com as alterações da Lei n.º 31/2008 de 17 de Julho, prevê no art.º 7 nº1 e o art.º 8.º nº1 e 2 mecanismos de responsabilização para o Estado e demais entidades públicas, sem prejuízo da responsabilização de órgãos, funcionários e agentes.

Contudo, os institutos da responsabilidade exigem que os seus pressupostos estejam verificados o que não acontece.Com efeito, o autor não logrou provar a existência dos pressupostos necessários para a imputação do facto ilícito e correspondente dever de indemnização em danos numa esfera jurídica alheia. Na verdade, a culpa e o dolo não foram também provados. Analisemos os danos. A testemunha, Américo Freud, limitou-se a alegar a possibilidade de uma relação causal, entre a vigência do regulamento e o estado mental do autor. A mera alegação não basta. Em bom rigor, não serve para a prova da existência de danos e foi completamente omissa quanto à sua quantificação.

 

No caso em apreço não se provou a existência de qualquer dano susceptível de compensação. O autor não provou, como lhes competia em face ao disposto no art.º 342 n.º 1 CC, os factos concretos que integram o seu pedido e que são os factos constitutivos do alegado direito a serem indemnizados. Dos factos provados não resulta a prova da existência de danos de tutela jurídica.

 

Estão alegados danos patrimoniais e não patrimoniais. Os factos provados permitem pensar na sua probabilidade, mas são insuficientes para se concluir pela sua efetiva verificação – art.º 342 nº1,562 a566, todos do CC. Ao Autor cabia a alegação e prova dos elementos constitutivos de responsabilidade civil como antes se disse. Face à prova produzida não se consubstanciam os invocados danos, sendo os factos provados insuficientes para se concluir pela sua efetiva verificação. Os factos apurados permitem pensar na probabilidade da existência de danos patrimoniais, mas não provam a sua verificação

 

«Para que se possa falar de uma questão de responsabilidade civil é necessário que o lesado, titular do direito indemnizatório, tenha sofrido um dano, só interessando mesmo averiguar sobre o concurso de outros pressupostos se aquele preexistir. Sem dano não há responsabilidade», Acórdão do STJ de 24/05/07, P.n.º 07A1187, in http:// www dgsi.pt.O dano é pressuposto e requisito da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil, contratual ou extracontratual.

Seguindo o entendimento do mesmo acórdão importa referir que não havendo dano, o direito desinteressa-se da conduta ilícita e demais elementos constitutivos da responsabilidade civil, enquanto fonte da obrigação de indemnizar.

 

Em suma, não pode proceder o pedido de indemnização cível, na medida em que o autor não logrou provar os pressupostos que preenchem o instituto da responsabilidade civil.

 

 

VI – Decisão quanto à pretensão do Autor contra a Ré Ministério da Agricultura e do Mar

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo em negar provimento ao pedido de desaplicação ao caso concreto de normas regulamentares, dando antes provimento à declaração de ilegalidade do regulamento com força obrigatória geral. O pedido de indemnização cível será negado por falta de prova dos pressupostos do instituto em causa.

 

Do pedido do Autor contra a Ré Carris, SA.

 

VII – Dos Factos relativamente à pretensão do Autor contra a Ré CC, SA.

 

1-      No dia 3 de Novembro de 2013, o A. foi impedido de entrar no eléctrico 28, carreira assegurada pela Ré CC. S.A.

2-      O A. transportava consigo, no momento em que pretendia entrar no eléctrico, dois cães.

3-      O condutor do eléctrico, João Galhofinho, impediu o A. de entrar no dito meio de transporte, justificando tal conduta com a aplicação do novo Regulamento dos Animais Domésticos.

4-      O A. caiu junto do eléctrico.

5-      O A. foi despedido do seu trabalho com base em faltas injustificadas.

 

O tribunal formou a seguinte convicção quanto aos quesitos constantes da base instrutória:

 

Quesitos 2 e 3 – Os cães que eram transportados pelo autor eram de pequeno porte, sendo transportados em caixas próprias para o efeito.

O tribunal aprecia livremente a força probatória dos depoimentos das partes e das testemunhas, tendo formado a sua convicção com base no depoimento de Noé das Arcas (parte no pleito) e Jorge Pascoal da Noruega, que se apresentaram seguros, convictos, sem demonstrar atrapalhação ou contradição num discurso cujo conteúdo se acha verosímil. As testemunhas da Ré mostraram alguma confusão, embaralhação, não abonando tais factos para a fé dos seus depoimentos. Destarte, o tribunal não considera que tenham sido colocados devidamente em dúvida os factos alegados pelo autor, relativamente a estes quesitos, tendo-os como provados.

 

Quesito 4 – Os cães não estavam açaimados porquanto assim resultou de todos os depoimentos, quer de parte, quer testemunhais, que não colocaram em causa a inexistência de açaime.

 

Quesito 5 – o Autor não se acompanhava de mais nenhum animal; tal é a convicção do tribunal, que se forma baseada no testemunho do autor, e pelos mesmos motivos que afirmamos supra, no referente aos quesitos 2 e 3, e por parecer manifestamente improvável que alguém se consiga acompanhar de dois cães em caixas próprias para o efeito, e ainda com um aquário de cobras como alegado na contestação da Ré CC. SA.

 

Quesito 6, 7 e 8 – O tribunal não conseguiu apurar se o condutor invocou outras razões para além da aplicação do regulamento, nomeadamente a existência de utentes com prioridade. Para isto contribui o facto de ser extremamente improvável que uma pessoa de mobilidade reduzida, necessitando de cadeira de rodas para se locomover, se encontre na fila para se deslocar num eléctrico marcadamente antigo, pequeno e sem as condições adequadas e necessárias para o transporte deste tipo de utentes. Não se crê, assim, dar fé ao testemunho de Joana Nunes porquanto se acha inverosímil a sua presença na fila do eléctrico, tal como alegado nos autos.

Com base no depoimento de Noé das Arcas e de Jorge Pascoal da Noruega, o tribunal considerou como provado que o eléctrico se não encontrava perto da sua lotação máxima, essencialmente pelas razões invocadas na pronúncia sobre os quesitos 2 e 3.

 

Quesito 9 – O tribunal não considerou como provado que o autor tivesse caído por força do arranque do eléctrico. A testemunha João Galhofinho afirmou no seu depoimento que na altura em que a queda se deu estava bastante trânsito, além de que o semáforo estava encarnado e como tal teria de estar parado por força deste. Assim, acredita o tribunal que o eléctrico se manteve parado, tendo o autor caído por causa não imputável à conduta do condutor.

 

Quesitos 10 e 11 – O colectivo de juízes não considerou como provado que o autor foi impedido várias vezes de entrar nos transportes da Ré CC SA, nem que com isso teve despesas económicas extraordinárias. Nenhum depoimento de testemunha houve que pudesse levar o tribunal a admitir este facto como verdadeiro, e nem do contrato de avença apresentado se pode inferir o impedimento de entrada nos transportes da Ré CC SA.

 

Quesitos 15 – Quanto à questão da circular, as partes juntaram aos autos dois documentos, com conteúdos diferentes, e que pretensamente teriam sido emanados pela Ré Carris SA e destinados aos seus trabalhadores. A Ré arguiu a falsidade do documento apresentado pelo Autor, que determinava que ninguém poderia entrar nos seus transportes públicos acompanhado de animais. O autor não fez prova da autenticidade do documento, pelo que o tribunal não poderá aceitar, como verdadeiro, o seu conteúdo. Em contrapartida a Ré juntou um documento (circular interna) cujo conteúdo era oposto ao documento apresentado pelos autores, e que não foi por estes contestado, quanto à sua veracidade. O tribunal considera assim, que o conteúdo da circular interna da ré não proibia, pura e simplesmente, a entrada de animais nos seus transportes, e consequentemente, as pessoas que os transportavam.

 

VIII - Do Direito relativamente à pretensão do Autor contra a Ré CC,SA.

 

Do pedido de indemnização pelos danos causados:

A responsabilidade civil extraobrigacional do Estado, e demais entidades públicas, aplicada também à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo (art. 1º/5 da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro), tem como pressupostos a existência de um facto, a sua ilicitude, a culpa do agente, o dano do lesado, e o nexo causal entre o facto e o dano.

No caso em apreço, o tribunal não considerou que a queda do autor tenha resultado de uma conduta do condutor da Ré, pelo que, dessa forma, se exclui automaticamente o preenchimento do primeiro pressuposto da responsabilidade civil: o facto.

Do pedido de abstenção de conduta:

 

Quanto à pretensão de abstenção de conduta deve fazer-se um esclarecimento quando ao conceito de “comportamento” previsto no art. 37 do CPTA, este deve ser interpretado como abrangendo meras actuações administrativas para a acção impositiva, devendo ter também esse significado em relação à acção inibitória.

Apesar da letra da lei não o referir, nada parece fazer excluir a possibilidade de uma tutela inibitória contra actuações já em curso.

 

O objecto de litígio nesta acção é a alegação do autor de que um seu direito ou interesse legalmente protegido está a ser lesado através da continuação de uma mera actuação administrativa.

 

A legitimidade activa dos particulares deve ser aferida à luz do artigo 9.º, n.º 1, ou seja, depende da alegação de ser parte da relação material controvertida.

 

A acção de condenação à abstenção é admissível quando o autor conseguir provar plausivelmente que o comportamento que pretende atacar é ilegal e vai possivelmente lesar um seu direito ou interesse legalmente protegido.

Parece ser possível a enunciação geral dos pressupostos necessários para a admissibilidade desta acção. É necessário a verificação de três pressupostos cumulativos.

 

Primeiramente, a existência de um bem jurídico do particular que é tutelado pela ordem jurídica. A acção de abstenção dirige-se à protecção de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares como, por exemplo, o direito de propriedade, o direito à livre iniciativa económica e de empresa, os direitos da personalidade, o direito à saúde, entre outros.

Quanto a este pressuposto, o Tribunal não considera que se encontre preenchido porquanto não consegue determinar qual o bem jurídico afectado pela actuação de impedir a entrada num eléctrico.

 

Em segundo lugar, esse bem jurídico deve estar a sofrer uma lesão ou existir um fundado receio de que essa lesão se verifique por causa de um comportamento de uma entidade administrativa ou de um particular. Se a lesão for considerada um mero transtorno face ao interesse geral ou direitos de terceiros, não deve ser considerado que este requisito está preenchido. Apenas quando o juízo revelar que o requisito está preenchido, deve o tribunal considerar que o autor tem legitimidade para interpor a acção.

Ora se o Tribunal não encontra bem jurídico passível de lesão, consequentemente, este segundo pressuposto não se encontra verificado.

 

Em terceiro lugar, é necessária a ilegalidade da lesão. A acção só é admissível se a actuação administrativa for, presumivelmente, ilegal. A ilegalidade pode ser derivada de vários tipos de vícios. Novamente, se o Tribunal não encontrou nenhum bem jurídico a ser afectado, ou seja, a sofrer uma lesão, esta não chegou sequer a verificar-se pelo que não é ilegal, não estando nenhum dos pressupostos necessários preenchidos.

 

 

IX – Decisão do Tribunal quanto às pretensões do Autor contra a Ré CC, SA.

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo em negar provimento ao pedido de indemnização formulado pelo autor contra a Ré CC, SA. e absolver a Ré CC, SA. do pedido de abstenção de conduta.

 

Custos a cargo de Noé das Arcas.

 

 

 

Lisboa, 6 de Dezembro de 2013.

 

 

Os juízes de Direito,

 

André Fortunato

Francisco Rodrigues

Gonçalo Sousa

Nuno Azevedo

Raquel Dias

Rui Duarte



[1] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo edição de 2012 pag 106 citando Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, p, 109

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Raquel Dias às 22:35

Sexta-feira, 06.12.13

...

O regime de prazos CAT.pdf

 

Segue o ficheiro em PDF, pois devido ao sistema do blog não aparecia uma imagem/quadro inserida no trabalho.

Caso exista algum problema derivado desta forma de postar, peço ao Professor que indique e assim farei o post sem o dito quadro.

 

Miguel Bento Ribeiro

Autoria e outros dados (tags, etc)

por Miguel Ribeiro às 20:49



Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Dezembro 2013

D S T Q Q S S
1234567
891011121314
15161718192021
22232425262728
293031