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Em matéria de legitimidade passiva, o regime regra consta do art. 10º nº 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA em diante), determinando que à partida a legitimidade passiva corresponde à contraparte na relação material controvertida tal como esta é configurada pelo autor. Deve o autor, portanto, demandar em juízo quem estiver colocado em posição contraposta à sua no âmbito da relação material controvertida.
Historicamente, os processos de anulação de actos administrativos nasceram, no contencioso administrativo francês, como processos sem partes, em que a Administração figurava como “autoridade recorrida” e não enquanto entidade demandada, sendo este um dos “velhos traumas” apontados pelo Professor Vasco Pereira da Silva[1] em que se confundia administrar com julgar, estando a Administração em posição correspondente ao juiz a quo quando alguém interpusesse recurso para uma instância superior da decisão que ele proferiu[2].
Para suprir o referido trauma, o art. 10º nº 2 do CPTA é claro na identificação da Administração enquanto parte, ao dispor que nas acções relativas a actos ou omissões administrativas “a parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos”.
Supera-se o trauma ao tratar a Administração nos termos do princípio da igualdade das partes, mas peca o legislador ao optar pela introdução do conceito de “pessoa colectiva pública” que tem vindo a ser objecto de alguma controvérsia.
Devemos antes de mais atender às transformações relevantes da Administração Pública no moderno Estado Pós-Social, transformações estas que conduziram a uma complexidade da organização administrativa de modo a que não possamos hoje apontar apenas um único sujeito de imputação de condutas administrativas, o que torna criticável a opção do legislador pelo conceito de “pessoa colectiva pública”.
O Professor Vasco Pereira da Silva[3] elenca quatro transformações relevantes na Administração Pública que corroboram a qualificação da opção pelo conceito de pessoa colectiva pública como infeliz: primeiramente deveria ter-se atendido à multiplicidade e diversidade de natureza dos entes que exercem a função administrativa; em segundo lugar à multiplicação de competências decisórias autónomas e o consequente descentramento da actividade administrativa; seguidamente à superação do “dogma” da impermeabilidade da pessoa jurídica (passando a atribuir-se importância às relações jurídicas inter-orgânicas e intra-orgânicas); por fim, ao afastamento da teoria das “relações especiais de poder”, que conduziu à consideração de que tudo o que acontece no interior da pessoa colectiva também possui natureza jurídica e, como tal, também se encontra submetido à lei.
Estas transformações evidenciam a tendência autonomizadora das autoridades administrativas, tendência acompanhada pelo ordenamento jurídico porquanto se parte do entendimento de que estas são sujeitos de direito, susceptíveis da titularidade de posições jurídicas activas e passivas. Tendência igualmente verificada nas normas constitucionais, as quais se referem tanto a pessoas colectivas como a órgãos administrativos (arts.266º e seguintes da Constituição da República Portuguesa), e nos arts.13º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo que se ocupam dos órgãos públicos, atribuindo-lhes importantes poderes de actuação nas relações administrativas.
Cumpre agora entender quais os objectivos da introdução do conceito de pessoa colectiva pública no art. 10º nº 2 do CPTA. Como referido na exposição de motivos da proposta de lei que aprovou o CPTA, esta inovação pretendia alcançar dois objectivos fundamentais: primeiro, facilitar a determinação, pelo autor, da entidade com legitimidade passiva; e segundo, permitir a cumulação de pedidos que sigam diferentes formas de processo.
No que concerne ao primeiro objectivo, não parece simples a aplicação desta regra na medida em que pode tornar-se complexo identificar a entidade demandada. Vejamos alguns exemplos: acto ou omissão imputável a um director regional; ou o caso de actos ou omissões imputáveis a órgãos ad hoc (júris de concursos) ou de estruturas constituídas para a prossecução de missões temporárias (equipas de missão)[4].
Poderá, no primeiro exemplo acima descrito, apontar-se como deslocado o carácter concentrador de competências que estas novas regras assumem, visto que todo o contencioso da Administração directa do Estado é encaminhado para o ministro, que será sempre a entidade demandada. Qualquer acção que tenha por objecto, por exemplo, a impugnação de actos praticados por um director regional, será citado para contestar o ministro do qual aquele órgão dependa. Mesmo quando citado o órgão e não o ministério ou a pessoa colectiva, se o órgão estiver sujeito a poderes hierárquicos, terá de comunicar a existência do processo ao seu superior hierárquico nos termos do art. 11º nº 5 do CPTA. Esta situação terá um impacto penalizador sobretudo em ministérios que tenham na sua dependência inúmeros serviços. Parece frustrar-se as transformações já analisadas, nomeadamente as que apontavam no sentido de uma autonomização das autoridades administrativas, tal a dependência que a introdução do conceito de pessoa colectiva pública faz surgir.
Ainda de referir que para efeitos de aplicação de sanções pecuniárias compulsórias e de efectivação de responsabilidade disciplinar e criminal terá de se desconsiderar a personalidade jurídica pública, uma vez que estas sanções afectam directamente os titulares dos órgãos incumbidos da execução da sentença (arts.159º nº 1 b) e 169º nº1 do CPTA).
Apesar das críticas apontadas à preferência pela pessoa colectiva pública, não se poderá deixar de reconhecer que a solução legislativa adoptada é suficientemente “aberta” para permitir resolver os problemas apontados. O facto de o nº 4 do art. 10º do CPTA considerar como “regularmente proposta a acção quando na petição inicial tenha sido indicado como parte demandada o órgão que praticou o acto impugnado ou perante o qual tinha sido formulada a pretensão do interessado” demonstra a “porta aberta” que se criou para a intervenção processual das autoridades administrativas e não apenas para as pessoas colectivas.
Na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva[5] devemos interpretar este artigo no sentido da consagração da regra alemã, segundo a qual deve estar em juízo a autoridade administrativa responsável pelo comportamento litigado. No entanto, por razões estéticas, deve considerar-se que o faz em “representação” da pessoa colectiva pública.
Em suma, a reforma veio consagrar uma solução de preferência pela pessoa colectiva como sujeito processual; porém fê-lo de uma forma aberta através de normas que na prática, como constatámos, permitem a intervenção processual das autoridades responsáveis pelos comportamentos administrativos litigados, ainda que em benefício da beleza do conjunto consideremos que o fazem em “representação” da pessoa colectiva, sendo portanto a pessoa colectiva pública uma moldura artística que embeleza o contencioso administrativo.
[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, p. 273.
[2] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, p.47.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, pp. 274 ss.
[4] Além do último exemplo, Alexandra Leitão ainda acrescenta as situações em que esteja em causa um acto ou uma omissão imputável a um membro do Governo integrado na Presidência do Conselho de Ministros ou uma acção de ilegalidade por omissão de elaboração de um decreto regulamentar cuja iniciativa cabe ao membro do Governo competente em razão da matéria, mas cuja competência de aprovação cabe por costume constitucional ao Conselho de Ministros.
[5] VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, 2008, p.281.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual geral, constitui uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia judicial sobre o mérito da causa. Esta consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, por isso, a legitimidade “não é uma qualidade pessoal, é antes uma qualidade posicional da parte face à acção”1, apurando-se em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor no momento da sua propositura (isto é, na petição inicial).
A relação controvertida é definida como a “fundamentação da diversidade de posições das partes quanto a um ponto com relevância jurídica substantiva” 2, portanto como a relação jurídica que constitui o objecto do processo.
Começarei por mencionar que o princípio geral relativo à verificação deste pressuposto na jurisdição administrativa verifica-se no art.º 9.º/1 CPTA que dispõe “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. Retira-se daqui a conclusão do critério da relação controvertida, de onde emerge o conflito, enquanto critério decisivo para se aferir da legitimidade das partes, partes essas que alegam ser titulares nessa relação jurídica administrativa quando estejam a ser afectadas nos seus direitos legalmente protegidos, quando vejam a sua esfera jurídica danificada pela acção ou omissão de determinadas condutas administrativas. Resta referir que quanto à querela subjectivismo/objectivismo, este preceito comporta uma visão subjectivista tendo em conta que visa tutelar interesses pessoais individuais dos cidadãos lesados, afectados na sua posição jurídica.
Entrado agora na legitimidade activa para impugnação de actos administrativos, teremos que esclarecer que neste tipo de acção administrativa especial a lei não elege a titularidade da relação material controvertida como critério de aferição da legitimidade limitando-se a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) CPTA). Diferentemente do critério geral plasmado no art.º 9 CPTA, nas acções de impugnação de actos administrativos o critério para se ajuizar da legitimidade activa é a utilidade ou vantagem que se pode retirar da impugnação contenciosa do acto lesivo, bastando a existência de um interesse directo e pessoal na invalidação do acto. Este critério especial alarga a possibilidade da propositura deste tipo de acção aqueles que não sendo os titulares da relação donde emerge o conflito podem, no entanto, ser reflexamente prejudicados por ela, adoptando assim um traço objectivista na medida em que visa tutelar a legalidade e garantia da prossecução do interesse público, pois todo e qualquer particular que tendo sido afecto por esse acto ilegal poderá recorrer ao sistema judiciário desde que dai lhe advenha uma vantagem.
O interesse diz-se directo e pessoal, respectivamente, “quando o benefício resultante da anulação do acto recorrido tiver repercussão imediata no interessado”3 e “quando a repercussão da anulação do acto recorrido se projectar na própria esfera jurídica do interessado”4. Este critério adoptado pelo código dos tribunais administrativos quanto a acções de impugnação tem a sua base assente na seguinte lógica: a administração emite os actos ao abrigo da sua veste de poder público, tal como refere o TAC no proc. nº 12/141 de 30/03/2006 “o acto administrativo, enquanto conduta unilateral da Administração do domínio de uma relação concreta em que ela é parte, configura um comando, positivo ou negativo, pelo qual se constituem, se modificam ou extinguem relações jurídicas, se decide um conflito, se fixa juridicamente o sentido duma situação de facto”, logo importa garantir aos cidadãos lesados pela sua prática o direito de reagir judicialmente contra esses actos unilaterais.
O art.º 55/1 al a) CPTA permite-nos retirar duas conclusões:
O autor terá assim que alegar também que o acto violador, para além de ilegal, é lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos6 e que retira vantagens imediatas da sua anulação. Importa que o autor invoque a titularidade de um interesse directo e pessoal e não meramente longínquo, eventual ou hipotético. A indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse, cuja protecção reclama, só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva de lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos actuais como, aliás, resulta da 2ª parte "por ter sido lesado" (e não que venha a ser lesado), podendo derivar de meras situações de facto, simples situações de vantagem de carácter económico7e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório.
Em suma, teremos que referir que na posição do professor Mário Aroso de Almeida “só o carácter pessoal do interesse diz verdadeiramente respeito ao pressuposto processual da legitimidade”8 e o requisito do carácter directo não se prende com a legitimidade processual mas com a “questão de saber se o alegado titular do interesse tem efectiva necessidade de tutela judiciária: ou seja, tem que ver com o seu interesse processual ou interesse em agir”9.
No entanto,não podemos concordar com esta afirmação na medida em que o interesse em agir, enquanto pressuposto processual, consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão, ou seja, o autor só tem interesse em agir quando não dispõe de quaisquer outros meios (extrajudiciais) de realizar aquela pretensão e isso ocorre, ora porque tais meios não existem, ora porque o autor os utilizou e esgotou sem sucesso.
Assim, o “ o interesse processual, em agir, respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo”10. Existe interesse processual por parte do autor sempre que o processo judicial seja o único meio de o demandante conseguir satisfazer o seu “interesse substancial”.
Resta apenas uma breve referência à regularidade da constituição da instância que depende da observância de um conjunto de requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito da causa, entre os quais a legitimidade processual.
E, por ser assim, a propositura de uma acção por pessoa a quem falte legitimidade para formular os pedidos que pretende ver reconhecidos determina a absolvição do demandado da instância (art.º 288.º/1/d) do CPC)11. Estamos perante uma excepção dilatória, portanto a instância extingue-se sem que o tribunal se pronuncie sobre o mérito da causa, isto é, sem que o tribunal se pronuncie sobre o objecto do processo. Não dizendo respeito ao mérito da causa, não adquire força de caso julgado material mas tão somente força de caso julgado formal, só tem valor intraprocessual, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida (isto é, o seu efeito esgota-se dentro do processo), concluindo-se que por si só não impede a propositura de nova acção com o mesmo objecto.
1. José Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol I, 3ª ed.,Coimbra, ano 2012
2. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997
3. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo
4. Diogo Freitas do Amaral, ob cit
5. Este já era o regime que se no anterior contencioso administrativo. A única diferença que se pode apontar é a de que neste se referia, expressamente, que o interesse para além de ter de ser directo e pessoal tinha de ser legítimo, teria que ter a cobertura do direito, o que agora não acontece. Essa diferença é irrelevante já que não fará sentido conceder legitimidade a alguém que se apresente em juízo a peticionar o reconhecimento de um interesse sem cobertura legal e, portanto, ilegítimo.
6. Como refere Sérvulo Correia “pode impugnar um acto administrativo quem alegue a lesão por este não necessariamente de um direito, mas também de um interesse legalmente protegido(...) O interesse legalmente protegido é tambem ele um interesse pessoal por via da sua reflexa instrumentalidade para com posições de vantgaem do titular, in Direito do contencioso administrativo, Vol I
7. Rui Chancerelle de Manchete, Sobre a legitimidade dos particulares nas acções administrativas especiais, Estudos em homenagem ao professor Sérvulo Correia, vol. II
8. Mário Aroso de Almeida, Manual de direito administrativo, Coimbra
9. Mário Aroso de Almeida, ob cit
10. António Montalvão Machado e Paulo Pimenta, O novo processo civil, Almedina
11.Proc. nº 230/12 de 20/06/2012 Supremo Tribunal Administrativo
Índice
1. Delimitação do problema
2. Noção de pressupostos processuais
3. Não verificação de pressupostos processuais
4. A personalidade judiciária
4.1. Breve definição
4.2 Regime actual
4.3 Critérios de aferição da personalidade judiciária
4.4. Consequências da falta de personalidade judiciária
5. Conclusões
1. Delimitação do problema
No âmbito desta análise, não me proponho a esgotar a totalidade dos problemas ou questões que esta realidade encerra. Seria tarefa demasiado árdua e certamente goraria quaisquer perspectivas do leitor em ver este tema definitivamente tratado. O que me cumpre a analisar é, de uma forma breve e sumária, o pressuposto processual da personalidade judiciária no âmbito da jurisdição administrativa. O interesse desta matéria é incontestável. Sem personalidade judiciária, ou seja, sem a susceptibilidade de a parte estar presente no processo, os demais pressupostos processuais perdem qualquer utilidade.
A referência ao processo civil surge naturalmente. Tendo estudado os pressupostos processuais relativos às partes no âmbito do processo civil e confrontado agora com uma nova realidade processual, o Contencioso Administrativo, a comparação é inevitável. O objecto deste estudo centrar-se à no direito processual administrativo. Cumpre analisar brevemente o regime dos pressupostos processuais relativos às partes, uma vez que a personalidade judiciária aqui se insere, para posteriormente limar o âmbito deste instituto. Contudo, a referência ao regime adjetivo cível servirá para clarificar a questão que me proponho a resolver: será a personalidade judiciária uma realidade própria e independente ou mero instituto com especificidades próprias relativamente ao regime instrumental do processo civil?
A personalidade judiciária é, sem dúvida, um pressuposto processual. Daí a utilidade numa breve análise do regime dos pressupostos processuais no processo administrativo. Os pressupostos processuais, são em poucas palavras, os elementos de cuja verificação depende, num determinado processo, o poder-dever do juíz de se pronunciar sobre o fundo da causa. São os elementos que permitem ao juíz apreciar o mérito do pedido formulado e de sobre ele proferir uma decisão[1]. São condições para que o juíz possa decidir de mérito, para que possa compôr definitivamente o litígio.
Estes obstáculos ao conhecimento do mérito da causa correspondem, grosso modo, às exceções dilatórias do processo civil, onde também aí o julgador, na falta destes pressupostos processuais, está impedido de decidir de fundo sobre um determinado litígio art.º 576 nº2 (CPC).
Vejamos o regime consagrado no CPTA. Não estando verificados estes pressupostos ou melhor, na presença de pressupostos negativos, caberá ao tribunal administrativo providenciar pelo suprimento das excepcões dilatórias e convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado art.º 88 nº2 CPTA. É uma solução inspirada no princípio do aproveitamento do processo. A falta dos pressupostos implica assim, uma decisão que rejeita a ação. Caso o autor não corrija essas excepções, a consequência será a absolvição do réu da instância. Á semelhança do regime cível, a absolvição do réu da instância não impede o autor de propor nova ação, corrigindo os vícios de que padece o articulado.
Contudo, existem particularidades de relevo no CPTA, quanto à falta de pressupostos processuais.
No âmbito da ação administrativa especial, existe uma correção ex officio da petição pelo juíz ou um despacho de aperfeiçoamento. Esta correção ou despacho destina-se a permitir o suprimento ou a correção pelo autor das excepções dilatórias, nos termos do art.º 88 do CPTA, norma de âmbito geral. Não supridas ou corrigidos os vícios que enfermam a petição, a consequência será a absolvição da instância do demandado com os efeitos já referidos.
Por outro lado, o art.º 4, n.º 3 e 4 (cumulação ilegal de pedidos), o art.º 12 n.º 3 e 4 (coligação ilegal) e art.º 14 (incompetência do tribunal) vêm, claramente, beneficiar um autor menos diligente. O demandante tem a possibilidade de corrigir as insuficiências e imprecisões do articulado, num amplo espaço de manobra que não é reconhecido no regime cível.
Por último, vejamos os prazos para a entrega de novas petições. Perante uma mera decisão de forma (a absolvição da instância),o autor tem prazos mais longos para apresentar novas petições. Nas palavras de Vieira de Andrade, a lei foi generosa e o regime actual é altamente favorável[2].Assim, a entrega de um novo articulado obedece ao prazo geral de 15 dias, nos termos do art.º 89.º, mas será de um mês ,quer no caso de uma cumulação ilegal de pedidos art.º 4.º n.º 4 e art.º 12 quer no caso de incompetência absoluta do tribunal art.º 14.
Ao nível da tempestividade, o art.º 89 nº 2 vem estabelecer que a petição se considera apresentada na data em que tinha sido apresentada a primeira. Ressalvam-se, naturalmente, os casos em que não foi corrigida a ilegalidade art.º 88 n.º 4.O autor também só beneficiará deste regime uma vez art.º 89 n.º 4 in fine.
O momento para o conhecimento destes pressupostos negativos deverá ser feito no momento do despacho saneador[3] art.º 87 CPTA. O regime quanto ao momento para o conhecimento dos pressupostos processuais é semelhante em ambas as jurisdições. Também no processo cível, a existência de exceções dilatórias que obstam ao conhecimento do mérito e constituem factos capazes de obstar à apreciação do mérito da causa devem ser conhecidas no despacho saneador art.º 595/1/a) CPC[4].Quanto ao conhecimento destas exceções, em ambas as jurisdições são de conhecimento oficioso[5], não existindo aqui particularidades de relevo no âmbito do processo administrativo.
4.1 Breve definição
A personalidade judiciária consiste na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei[6]. É a susceptibilidade de ser parte no processo[7].Todas as pessoas, sejam singulares ou colectivas, desfrutam dessa mesma susceptibilidade de serem partes[8].Na lei civil, corresponde grosso modo à personalidade jurídica, através do chamado critério da “coincidência”. Por outro lado, a lei processual civil vem reconhecer a entes sem personalidade jurídica a personalidade judiciária. É esta a grande vantagem do pressuposto processual[9], que utiliza o critério da “diferenciação patrimonial” art.º 12 CPC[10].
Contudo, o regime processual administrativo nada nos diz expressamente sobre este instituto. Numa leitura mais desatenta, poderia mesmo parecer omisso quanto à personalidade judiciária. Apesar de se recorrer ao Código de Processo Civil[11], a outras disposições do CPTA e à jurisprudência, é um instituto disperso na lei.
4.2 Regime actual
Antes da entrada em vigor do CPTA, o regime que regulava este instituto, era a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA).Assim, o réu das ações administrativas era o órgão autor do ato recorrido, semelhante solução tinha lugar no âmbito do antigo recurso contencioso. O órgão que praticava o acto era assim a entidade que gozava de personalidade judiciária. A herança do objectivismo pesava demais[12].
O anterior regime pugnava mais, globalmente, por uma perspectiva centrada na legalidade administrativa do que no reconhecimento da existência de posições jurídicas assentes nos direitos subjectivos. No núcleo duro do Contencioso Administrativo, como o recurso contencioso (hoje a ação administrativa especial de impugnação art.º 46 e ss CPTA) e nas acções para o reconhecimento de direitos ou interesses, o demandado deveria ser sempre o órgão autor do acto. Somente no contencioso contratual e de responsabilidade civil é que o demandado deveria ser a pessoa colectiva de direito público.
A personalidade judiciária era atribuída fora do princípio da coincidência, uma vez que a “autoridade recorrida nunca era a pessoa colectiva de direito público, mas sim o “autor do acto recorrido[13]”. Na prática, a legitimidade processual e a personalidade judiciária confundiam-se. A verificação de qualquer um destes pressupostos processuais, era feita através da determinação do concreto órgão autor do acto. Assim o critério da determinação da legitimidade passiva dos entes públicos era muito mais estreito, o interesse directo em contradizer estava delimitado em função do acto (da sua autoria)[14]. Hoje, CPTA e CPC, consagram o interesse directo em contradizer. Este interesse directo em contradizer é balizado em função da relação material controvertida.
O novo CPTA vem estabelecer um novo critério de referência na determinação da entidade pública demandada art.º 10 nº2. O demandado deixa de ser o órgão que originou o acto recorrido, para passar a ser, a pessoa colectiva de direito público ou o ministério. A alteração deveu-se a vários factores: à promoção da justiça administrativa[15] e à necessidade de adaptar o novo critério ao princípio da cumulação de pedidos art.º 4 CPTA. O facto de o novo regime do contencioso administrativo, colocar a tónica num “processo de partes” e não no acto administrativo, revela a mudança de paradigma.
Contudo, e como já referimos, não existe qualquer disposição expressa no CPTA que trate especificamente da personalidade judiciária. Teremos de analisar outras disposições. O artigo 10.º do CPTA por exemplo, que aparentemente trata da legitimidade passiva, estabelece os critérios que permitem determinar a entidade pública a demandar[16] através da atribuição de personalidade judiciária.Como sabemos, a legitimidade é um pressuposto processual que exprime uma relação entre um determinado sujeito e o objecto do processo. Encontra-se consagrada no art.º 9 do CPTA, sem prejuízo de normas especiais como o art.º 55.Mas teremos sempre de recorrer ao art.º 10, para resolver o nosso problema.
4.3 Critérios de aferição da personalidade judiciária
Que critérios·consagra o art.º 10 do CPTA para aferirmos da personalidade judiciária?
O nº 2 do artigo 10º vem estabelecer que quando o litígio “tenha por objecto a ação ou omissão de uma entidade pública, a parte demandada é a pessoa colectiva de direito público”. Podemos já encontrar um primeiro critério, o critério da coincidência. Assim, se a entidade em causa tiver personalidade jurídica (no caso, ser uma pessoa colectiva de direito público) gozará de personalidade judiciária. Exemplificando, se a Câmara Municipal da Autarquia X praticar o acto Y, será a pessoa colectiva de direito público, no caso, o Município X, a pessoa colectiva a estar em juízo. É esta última que goza de personalidade judiciária, e não o órgão como vimos.[17] Coincide assim, a personalidade jurídica com a personalidade judiciária. Por outro lado, pode invocar-se para fundamentar este critério, a aplicação subsidiária da regra geral do art.º 11 nº2 do CPC,que reconhece personalidade judiciária a quem goze de personalidade jurídica. Até aqui, nada de verdadeiramente inovador. Como vimos o regime cível, consagra plenamente o princípio da coincidência.
Vejamos agora um segundo critério: o da extensão da personalidade judiciária aos ministérios. De acordo com o critério da coincidência para se aferir da personalidade judiciária, a resposta natural para um acto praticado por um órgão da pessoa colectiva de direito público como o Estado, seria precisamente, o Estado. Contudo, a lei, devido ao elevadíssimo número de litígios que existiriam chamando o Estado a estar em juízo, vem reconhecer personalidade judiciária aos ministérios. Os ministérios tornam-se assim sujeitos processuais, tornam-se entidades com personalidade judiciária, no âmbito de litígios, pelos actos ou omissões praticados pelos seus órgãos respectivos. Este critério é na verdade, uma extensão que a lei faz, a entidades que como sabemos não gozam de personalidade jurídica mas que irão gozar de personalidade judiciária.
Todavia, para se saber qual o ministério a demandar precisaremos sempre de recorrer ao critério da titularidade da relação material controvertida art.º10 nº1.[18]
É de notar ainda o benefício que a lei a concede, aos casos de erro na demanda da entidade em causa. Assim, dispõe o art.º 10 nº 4 que em caso de erro na identificação do autor do acto “considerando-se, nesse caso, a ação proposta contra a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o órgão pertence”. Este regime visa facilitar as dificuldades da identificação do autor do acto e claramente fazer valer o conhecimento de mérito sobre questões de mera forma.
O erro na determinação do autor do acto é meramente irrelevante, como vimos, a sanação é feita ope legis[19] Por outro lado, a jurisprudência tem vindo, com base em disposições do ETAF, a reconhecer personalidade judiciária a entes que verdadeiramente não podem ser enquadrados na hierarquia do Estado nem são, no sentido clássico do termo, órgãos puramente administrativos. A atribuição da personalidade judiciária ao Primeiro-Ministro e ao Conselho de Ministros, viria da própria lei. Assim quando o ETAF no artigo 24.º/a)-iii) e iv) atribui competência ao Supremo Tribunal Administrativo, nos processos relativos a atos e omissões destas entidades, então isso deveria pressupor a respectiva personalidade judiciária[20]
Assim é de atribuir, a personalidade judiciária ao Conselho de Ministros e ao Primeiro-Ministro, apesar de não constarem do art.º 10[21].
Para parte da doutrina, a referência a ministérios no art.º 10 nº2 do CPTA inclui também a Presidência do Conselho de Ministros, servindo este último como centro de imputação dos actos e omissões do Conselho de Ministros[22].
Analisemos o terceiro critério, o da extensão da personalidade judiciária aos órgãos administrativos. De acordo com o art.º 10/ 6, os órgãos deverão ser a entidade com personalidade judiciária, nos litígios entre órgãos. Na realidade, a lei visa centrar a susceptibilidade de ser parte, na entidade que praticou ou emitiu o acto. Mais do que a pessoa colectiva, é o órgão administrativo que agiu ou omitiu[23] que deve ter personalidade judiciária.
Vejamos agora o quarto critério, o de outras entidades públicas sem personalidade jurídica mas com personalidade judiciária.
Existem uma multiplicidade de entes destituídos de personalidade jurídica, a que a doutrina tem vindo a reconhecer personalidade judiciária. Não são abrangidos pelo critério de extensão do art.º 10 nem podem ser enquadráveis como ministérios nem qualificados como meros órgãos administrativos inseridos na esfera do Estado ou de uma qualquer pessoa colectiva de direito público. Refiro-me, portanto, às entidades elencadas no art.º 24 .º/1-a) ETAF.Além daquelas já referidas, enquandram-se neste critério, entidades como o Tribunal de Contas ou o Conselho Superior de Defesa Nacional. É reconhecido ao STA competência para dirimir os litígios, logo em primeira instância, que envolvam estas entidades. Seria, no mínimo curioso, que qualquer destas entidades pudesse estar em presente em juízo, nos termos referidos, mas não gozasse de personalidade judiciária.[24]
Deve também ser reconhecida personalidade judiciária, apesar de não contar do elenco do art.º 10 do CPTA ou do art.º 24 do ETAF, às Regiões Autónomas[25].
Analisemos a quinta categoria de situações. Aqui o critério será a das entidades administrativas independentes sem personalidade judiciária. Mais uma vez, teremos de recorrer ao art. 10 do CPTA cuja epígrafe é a legitimidade passiva.
Como sabemos, existem várias entidades que integram a chamada “Administração Independente”. São entidades que formalmente pertencem à pessoa colectiva pública Estado, mas não integram a hierarquia do mesmo uma vez que gozam de independência e autonomia para a prossecução dos seus fins. Assim, para aferir da existência de personalidade judiciária, poderemos recorrer, num primeiro momento, ao já conhecido critério da coincidência constante do art.º10 nº2. Devemos analisar os vários diplomas que constituem estas entidades, para aferirmos se têm ou não a qualidade para estar em juízo. Se tiverem personalidade jurídica terão personalidade judiciária. Até aqui nada de novo.
Contudo, o nº 3 do mesmo artigo vem estabelecer que deverá ser o Estado ou a pessoa colectiva pública a ser chamada em juízo quando estas entidades não gozem de personalidade jurídica. Assim, por exemplo, entidades como o Provedor de Justiça ou a Comissão Nacional de Protecção de Dados deveriam ser representados pelo Estado[26].Contudo, na disposição imediatamente seguinte, o art.º 11 nº2 do CPTA, vem impedir que o Estado seja representado pelo Ministério Público. A melhor solução será permitir que a entidade administrativa independente possa estar em juízo, apesar de não gozar de personalidade jurídica. Esta interpretação baseia-se no facto de art.º 10 nº 4 ser uma ressalva ao “disposto nos dois números anteriores”. Assim, considerando-se a acção proposta contra o Estado, a citação poderá ser feita ao Estado, que terá poderes para constituir advogado ou licenciado em direito para a representar[27].
4.4. Consequências da falta de personalidade judiciária
Importa agora analisar os efeitos da não existência deste pressuposto processual específico. No regime da LPTA, a falta de personalidade judiciária, do ente em questão, fosse ele um órgão ou serviço, era sancionada com a absolvição do réu da instância[28]. Alegava-se no sentido de ser um pressuposto insanável, uma vez que, não encontrava espaço de aplicação no art.º 8 do anterior CPC.
O CPTA estabelece no art.º 89 que “obstam nomeadamente ao prosseguimento do processo” os fundamentos aqui elencados. Vejamos o que acontece, quando falta a personalidade judiciária do réu.
Hoje, a questão não é líquida. Existe jurisprudência nos dois sentidos.
Para a maioria dos tribunais administrativos, o desrespeito pelo princípio da coincidência, é insusceptível de ser suprida, quer oficiosamente quer a convite das partes[29].Existe, contudo, jurisprudência minoritária, que considera a falta do pressuposto suprível, devendo ser dada ao autor a possibilidade de aperfeiçoamento da petição inicial[30].
Analisemos os argumentos das duas teses.
Primeiro, a que nega a possibilidade de sanação da não verificação de personalidade judiciária. Argumenta-se de que não cabe, ainda na esteira da jurisprudência anterior, nos casos de possibilidade de sanação do da falta de personalidade judiciária do actual art.º14 do CPC (anterior art.º8).O regime cível permite a sanação da falta deste pressuposto, mediante a intervenção da administração principal e ratificação ou repetição do processado, quando é demandada a sucursal, agência, filial, delegação ou representação. Ora, intentada uma ação (ressalvados os casos de litígios interorgânicos, administração independente ou de entes a quem a lei reconhece legitimidade mas não personalidade judiciária) contra um órgão, quando quem deveria ser chamado, era a pessoa colectiva, a consequência terá de ser a da absolvição do réu da instância. O próprio Supremo Tribunal Administrativo refere que é um ónus de “fácil cumprimento” e que existem erros de “tamanha evidência” que só são possíveis por “extremo descuido ou hostilidade perante o regime legal”[31].
Vejamos agora, a posição defendida por aqueles que permitem a sanação através de convite à parte ou mesmo de sanação oficiosa. Primeiro, vejamos os argumentos da doutrina e só depois os da jurisprudência. Para determinados autores, em particular, Esperança Mealha, poder-se ia invocar o facto de o erro de intentar a ação contra o acto em vez da pessoa colectiva ser irrelevante art.º 10 nº4 in fine. Por outro lado, pode alegar-se a existência de casos em que se atribuem personalidade judiciária, a entes sem personalidade jurídica, visto que é a esses órgãos a quem a ação ou omissão é imputável[32]. A ilustre autora, relembra, num outro argumento a posição doutrinária de por aplicação analógica do art.º 8 do CPC, se defender que quando demandado um organismo do Estado sem personalidade judiciária, esta poder ser sanada com a intervenção do Estado e a ratificação do processado[33]. Outro argumento prende-se com a dificuldade prática de identificação da entidade. A multiplicidade de ações às quais são aplicáveis os critérios de extensão de personalidade é baseada num conceito indeterminado, cuja interpretação pode conduzir a resultados díspares[34]. Por último, a própria organização administrativa, devido às omnipresentes alterações legislativas ou mesmo devido à morfologia dos entes que a integram, torna extremamente difícil para o autor a identificação do ente a demandar. Não é tarefa fácil, em muitos casos, saber se existe ou não personalidade jurídica.
A ilustre autora, argumenta ainda, que a insusceptibilibilidade de sanação representaria um “contra-ciclo” no novo contexto do contencioso administrativo, permitindo a imposição de obstáculos formais, perante questões de mérito[35]. Vejamos sobre este ponto a jurisprudência. O STA, invocando os princípios constitucionais de acesso á justiça e à tutela jurisprudencial efectiva (artigos 20.º e 268/4 CRP), o princípio “anti-formalista” do CPTA, considera que se deve considerar desculpável o erro de identificação sempre que nos termos da petição possa divisar-se, sem dúvida, o verdadeiro (embora que incorrectamente designado) objecto da impugnação.
O argumento para a possibilidade de sanação para outros autores seria diferente.A solução passaria pela formulação de um juízo sobre a “desculpabilidade” ou “não desculpabilidade” do erro na identificação do demandado[36].
Antes de tomar posição sobre o debate, cumpre clarificar a questão. Muitas vezes, a questão prende-se não com a errada identificação do demandado, enquanto sujeito processual, mas com uma errada identificação dos sujeitos. O regime cível actual, permite despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos actos processuais. Ao nível do contencioso administrativo, decisões judiciais recentes vêm permitir à luz dos mesmos princípios e fundando-se nos anteriores artigos 508.º/2 e 467.º/-a)do CPC, que se profira despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Quanto à errada identificação do sujeito.Inclino-me, para a primeira posição no sentido de permitir a possibilidade de sanação. Além dos motivos já referidos é que a melhor se compadece com o actual regime do CPTA. A forma não pode vencer o conteúdo. Não pode ser o autor penalizado, pela volatilidade das variações dos estatutos jurídicos dos entes com que se relaciona, sejam entidades públicas ou privadas, quando ajam ao abrigo de relações jurídico-administrativas art.º 10 nº 7. Permitir que a parte corrija o articulado será a melhor solução Concedendo um prazo razoável, o autor poderá investigar mais detalhadamente o ente em causa, sem sofrer a imediata penalização de absolvição do réu da instância. A sanação oficiosa obrigaria os tribunais a um esforço adicional que só atrasaria o processo de decisão. O autor, se bem que ainda possa gozar de fundadas dúvidas na identificação do demandado, vê aproveitado o seu articulado. Só esta solução atribui efectividade no plano fáctico ao princípio da economia processual e à tutela jurisdicional efectiva.
A personalidade judiciária não está expressamente prevista no CPTA. Assim, existem vários critérios para identificar o ente em causa. A primeira via, segue o critério da coincidência. Será a regra para a maior parte das acções administrativas (acções administrativas especiais e comuns).Perante um ente com personalidade jurídica existirá personalidade judiciária. É este critério que vigora no regime cível. Contudo, o CPTA, distanciando-se da lógica da lei anterior (LPTA), vem atribuir esta qualidade aos ministérios e aos órgãos administrativos. É uma extensão que resulta da própria lei. Em rigor, também no regime cível, determinadas realidades como a herança jacente, vêm reconhecidas essa qualidade, apesar de não serem juridicamente reconhecidas como pessoas. Em ambos os casos o legislador, por motivos vários, alargou esta qualidade a entes que no nível substantivo, não gozam deste atributo. Por outro lado, talvez fosse desejável a consagração expressa deste instituto, autonomizando-o, pelo menos formalmente do regime da legitimidade passiva art.º 10 nº2. Não só traria fim ao debate sobre os efeitos da sua não verificação, como permitiria ao autor identificar o demandado, através de um serie de critérios expressos na lei. Os vários critérios apurados pela jurisprudência e pela doutrina demonstram a carência de uma consagração expressa. A própria natureza da Administração pública, a constante metarmofose dos entes que a compõe levam-me a concluir que se trata de um instituto independente.
Apesar de nos seus traços formais remeter ao regime cível, a verdade é que contém especificidades próprias e únicas. A remissão supletiva para o Código de Processo Civil, não resolve todos os obstáculos. Longe disso. É necessária uma interpretação de várias normas do CPTA para o autor saber quem deve efectivamente demandar. Em suma, estamos perante um instituto próprio do contencioso administrativo e não perante uma realidade com meras especificidades.
Bibliografia:
Trabalho realizado por Francisco Rodrigues nº 20904; subturma 4; 4º ano
[1] V.Vieira de Andrade, ob . cit
[2] Vieira de Andrade, ob, cit pag 277.
[3] Vieira de Andrade, ob. cit, pag, 274. Existem casos em que o seu conhecimento não é possível no despacho saneador, como a legitimidade, mas a lei vêm impor a concentração destes pressupostos neste momento.
[4] Marques, Remédio, ob cit pag 441.
[5] “As excepções dilatórias são de conhecimento oficioso pelo tribunal (art 578 do novo CPC) ou seja, não pode entender-se que, a larga maioria, das excepções dilatórias são apenas aquelas cujo relevo depende da vontade do réu (em alega-las).Apenas a incompetência relativa depende de alegação por parte do réu” - Remédio Marques, ob cit pag 442.
Cumpre clarificar a questão da incompetência. Na jurisdição administrativa, a incompetência no âmbito da jurisdição e as questões de competência dentro do âmbito de jurisdição são sempre de conhecimento oficioso- Mário Aroso de Almeida ob cit.
[6] Esta definição é da autoria de Bunsen, adoptada por Antunes Varela, ob.cit, pag. 108.
[7] Vieira de Andrade, ob cit, pag 279.
[8] Remédio Marques, ob cit pag 338.
[9] José Lebre de Freitas, ob, cit, pag 50. O autor chega a reconhecer que sem a extensão do instituto a entes sem personalidade jurídica, a figura perderia a sua utilidade.
[10] De acordo com o disposto neste artigo, a herança jacente e os patrimónios autónomos; as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais; as sociedades civis; as sociedades comerciais; o condomínio resultante da propriedade horizontal; os navios; gozam de personalidade judiciária. O “critério da afectação do acto” que se aplica às sucursais art.º 13 do CPC também é utilizado para estender esta qualidade a um ente sem personalidade jurídica.
[11] O próprio CPTA no seu art.º 1 determina que esgotado o próprio diploma e as disposições do ETAF, a lei processual civil será supletivamente, o mecanismo a recorrer.
[12] Era um verdadeiro” trauma de infância” do Contencioso Administrativo como refere Vasco Pereira da Silva, cit, pag 233 a 241.
[13] Esperança Mealha, ob, cit pag 11.
[14] Esperança Mealha, ob, cit pag 11.
[15] Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2002, pag 77.
[16] Esperança Mealha, ob, cit, pag 6.
[17] Como vimos, o critério alterou-se.
[18] Esperança Mealha , ob, cit pag 15.
[19] Mário Aroso de Almeida/ Carlos Fernandes Cadilha, ob, cit., pag 90.
[20] Esperança Mealha ob, cit, pag 19.
[21] Acórdãos do STA, 12.4.2007 e 05.05.2010.
[22] Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob, vit, pag 85.
[23] Luís Carvalho Fernandes, ob, cit pag 509.
[24] Por ordem: Presidente da República, Assembleia da República e o seu Presidente, o Tribunal de Contas e o seu Presidente, o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal de Contas e o seu Presidente…
[25] Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob, cit.
[26] José Lucas Cardoso, ob, cit, pag 46 a 68
[27] É esta a posição de Esperança Mealha ob, cit, pag 22
[28] Acórdão do STA, 3.11.2005
[29] Por exemplo no Acórdão do Tribunal de Círculo administrativo Norte de 19 de Julho de 2007
[30] A título de exemplo no Acórdão do TCAS de 22.4.2010
[31] Acórdão STA de 3.5.2005.
[32] Esperança Mealha ob, cit, pag 43 e ss
[33] Esperança Mealha, obra citada, página 44, citando Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit, página 139.
[34] Esperança Mealha, obra citada pagina 46.Veja-se o mais que paradigmático exemplo da autora
[35] Esperança Mealha ob, cit, pag 45
[36] Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha na obra citada, criticam precisamente este juízo de “desculpabilidade”.
Índice
1. Delimitação do problema
2. Noção de pressupostos processuais
3. Não verificação de pressupostos processuais
4. A personalidade judiciária
4.1. Breve definição
4.2 Regime actual
4.3 Critérios de aferição da personalidade judiciária
4.4. Consequências da falta de personalidade judiciária
5. Conclusões
No âmbito desta análise, não me proponho a esgotar a totalidade dos problemas ou questões que esta realidade encerra. Seria tarefa demasiado árdua e certamente goraria quaisquer perspectivas do leitor em ver este tema definitivamente tratado. O que me cumpre a analisar é, de uma forma breve e sumária, o pressuposto processual da personalidade judiciária no âmbito da jurisdição administrativa. O interesse desta matéria é incontestável. Sem personalidade judiciária, ou seja, sem a susceptibilidade de a parte estar presente no processo, os demais pressupostos processuais perdem qualquer utilidade.
A referência ao processo civil surge naturalmente. Tendo estudado os pressupostos processuais relativos às partes no âmbito do processo civil e confrontado agora com uma nova realidade processual, o Contencioso Administrativo, a comparação é inevitável. O objecto deste estudo centrar-se à no direito processual administrativo. Cumpre analisar brevemente o regime dos pressupostos processuais relativos às partes, uma vez que a personalidade judiciária aqui se insere, para posteriormente limar o âmbito deste instituto. Contudo, a referência ao regime adjetivo cível servirá para clarificar a questão que me proponho a resolver: será a personalidade judiciária uma realidade própria e independente ou mero instituto com especificidades próprias relativamente ao regime instrumental do processo civil?
A personalidade judiciária é, sem dúvida, um pressuposto processual. Daí a utilidade numa breve análise do regime dos pressupostos processuais no processo administrativo. Os pressupostos processuais, são em poucas palavras, os elementos de cuja verificação depende, num determinado processo, o poder-dever do juíz de se pronunciar sobre o fundo da causa. São os elementos que permitem ao juíz apreciar o mérito do pedido formulado e de sobre ele proferir uma decisão[1]. São condições para que o juíz possa decidir de mérito, para que possa compôr definitivamente o litígio.
Estes obstáculos ao conhecimento do mérito da causa correspondem, grosso modo, às exceções dilatórias do processo civil, onde também aí o julgador, na falta destes pressupostos processuais, está impedido de decidir de fundo sobre um determinado litígio art.º 576 nº2 (CPC).
Vejamos o regime consagrado no CPTA. Não estando verificados estes pressupostos ou melhor, na presença de pressupostos negativos, caberá ao tribunal administrativo providenciar pelo suprimento das excepcões dilatórias e convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado art.º 88 nº2 CPTA. É uma solução inspirada no princípio do aproveitamento do processo. A falta dos pressupostos implica assim, uma decisão que rejeita a ação. Caso o autor não corrija essas excepções, a consequência será a absolvição do réu da instância. Á semelhança do regime cível, a absolvição do réu da instância não impede o autor de propor nova ação, corrigindo os vícios de que padece o articulado.
Contudo, existem particularidades de relevo no CPTA, quanto à falta de pressupostos processuais.
No âmbito da ação administrativa especial, existe uma correção ex officio da petição pelo juíz ou um despacho de aperfeiçoamento. Esta correção ou despacho destina-se a permitir o suprimento ou a correção pelo autor das excepções dilatórias, nos termos do art.º 88 do CPTA, norma de âmbito geral. Não supridas ou corrigidos os vícios que enfermam a petição, a consequência será a absolvição da instância do demandado com os efeitos já referidos.
Por outro lado, o art.º 4, n.º 3 e 4 (cumulação ilegal de pedidos), o art.º 12 n.º 3 e 4 (coligação ilegal) e art.º 14 (incompetência do tribunal) vêm, claramente, beneficiar um autor menos diligente. O demandante tem a possibilidade de corrigir as insuficiências e imprecisões do articulado, num amplo espaço de manobra que não é reconhecido no regime cível.
Por último, vejamos os prazos para a entrega de novas petições. Perante uma mera decisão de forma (a absolvição da instância),o autor tem prazos mais longos para apresentar novas petições. Nas palavras de Vieira de Andrade, a lei foi generosa e o regime actual é altamente favorável[2].Assim, a entrega de um novo articulado obedece ao prazo geral de 15 dias, nos termos do art.º 89.º, mas será de um mês ,quer no caso de uma cumulação ilegal de pedidos art.º 4.º n.º 4 e art.º 12 quer no caso de incompetência absoluta do tribunal art.º 14.
Ao nível da tempestividade, o art.º 89 nº 2 vem estabelecer que a petição se considera apresentada na data em que tinha sido apresentada a primeira. Ressalvam-se, naturalmente, os casos em que não foi corrigida a ilegalidade art.º 88 n.º 4.O autor também só beneficiará deste regime uma vez art.º 89 n.º 4 in fine.
O momento para o conhecimento destes pressupostos negativos deverá ser feito no momento do despacho saneador[3] art.º 87 CPTA. O regime quanto ao momento para o conhecimento dos pressupostos processuais é semelhante em ambas as jurisdições. Também no processo cível, a existência de exceções dilatórias que obstam ao conhecimento do mérito e constituem factos capazes de obstar à apreciação do mérito da causa devem ser conhecidas no despacho saneador art.º 595/1/a) CPC[4].Quanto ao conhecimento destas exceções, em ambas as jurisdições são de conhecimento oficioso[5], não existindo aqui particularidades de relevo no âmbito do processo administrativo.
4.1 Breve definição
A personalidade judiciária consiste na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei[6]. É a susceptibilidade de ser parte no processo[7].Todas as pessoas, sejam singulares ou colectivas, desfrutam dessa mesma susceptibilidade de serem partes[8].Na lei civil, corresponde grosso modo à personalidade jurídica, através do chamado critério da “coincidência”. Por outro lado, a lei processual civil vem reconhecer a entes sem personalidade jurídica a personalidade judiciária. É esta a grande vantagem do pressuposto processual[9], que utiliza o critério da “diferenciação patrimonial” art.º 12 CPC[10].
Contudo, o regime processual administrativo nada nos diz expressamente sobre este instituto. Numa leitura mais desatenta, poderia mesmo parecer omisso quanto à personalidade judiciária. Apesar de se recorrer ao Código de Processo Civil[11], a outras disposições do CPTA e à jurisprudência, é um instituto disperso na lei.
4.2 Regime actual
Antes da entrada em vigor do CPTA, o regime que regulava este instituto, era a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA).Assim, o réu das ações administrativas era o órgão autor do ato recorrido, semelhante solução tinha lugar no âmbito do antigo recurso contencioso. O órgão que praticava o acto era assim a entidade que gozava de personalidade judiciária. A herança do objectivismo pesava demais[12].
O anterior regime pugnava mais, globalmente, por uma perspectiva centrada na legalidade administrativa do que no reconhecimento da existência de posições jurídicas assentes nos direitos subjectivos. No núcleo duro do Contencioso Administrativo, como o recurso contencioso (hoje a ação administrativa especial de impugnação art.º 46 e ss CPTA) e nas acções para o reconhecimento de direitos ou interesses, o demandado deveria ser sempre o órgão autor do acto. Somente no contencioso contratual e de responsabilidade civil é que o demandado deveria ser a pessoa colectiva de direito público.
A personalidade judiciária era atribuída fora do princípio da coincidência, uma vez que a “autoridade recorrida nunca era a pessoa colectiva de direito público, mas sim o “autor do acto recorrido[13]”. Na prática, a legitimidade processual e a personalidade judiciária confundiam-se. A verificação de qualquer um destes pressupostos processuais, era feita através da determinação do concreto órgão autor do acto. Assim o critério da determinação da legitimidade passiva dos entes públicos era muito mais estreito, o interesse directo em contradizer estava delimitado em função do acto (da sua autoria)[14]. Hoje, CPTA e CPC, consagram o interesse directo em contradizer. Este interesse directo em contradizer é balizado em função da relação material controvertida.
O novo CPTA vem estabelecer um novo critério de referência na determinação da entidade pública demandada art.º 10 nº2. O demandado deixa de ser o órgão que originou o acto recorrido, para passar a ser, a pessoa colectiva de direito público ou o ministério. A alteração deveu-se a vários factores: à promoção da justiça administrativa[15] e à necessidade de adaptar o novo critério ao princípio da cumulação de pedidos art.º 4 CPTA. O facto de o novo regime do contencioso administrativo, colocar a tónica num “processo de partes” e não no acto administrativo, revela a mudança de paradigma.
Contudo, e como já referimos, não existe qualquer disposição expressa no CPTA que trate especificamente da personalidade judiciária. Teremos de analisar outras disposições. O artigo 10.º do CPTA por exemplo, que aparentemente trata da legitimidade passiva, estabelece os critérios que permitem determinar a entidade pública a demandar[16] através da atribuição de personalidade judiciária.Como sabemos, a legitimidade é um pressuposto processual que exprime uma relação entre um determinado sujeito e o objecto do processo. Encontra-se consagrada no art.º 9 do CPTA, sem prejuízo de normas especiais como o art.º 55.Mas teremos sempre de recorrer ao art.º 10, para resolver o nosso problema.
4.3 Critérios de aferição da personalidade judiciária
Que critérios·consagra o art.º 10 do CPTA para aferirmos da personalidade judiciária?
O nº 2 do artigo 10º vem estabelecer que quando o litígio “tenha por objecto a ação ou omissão de uma entidade pública, a parte demandada é a pessoa colectiva de direito público”. Podemos já encontrar um primeiro critério, o critério da coincidência. Assim, se a entidade em causa tiver personalidade jurídica (no caso, ser uma pessoa colectiva de direito público) gozará de personalidade judiciária. Exemplificando, se a Câmara Municipal da Autarquia X praticar o acto Y, será a pessoa colectiva de direito público, no caso, o Município X, a pessoa colectiva a estar em juízo. É esta última que goza de personalidade judiciária, e não o órgão como vimos.[17] Coincide assim, a personalidade jurídica com a personalidade judiciária. Por outro lado, pode invocar-se para fundamentar este critério, a aplicação subsidiária da regra geral do art.º 11 nº2 do CPC,que reconhece personalidade judiciária a quem goze de personalidade jurídica. Até aqui, nada de verdadeiramente inovador. Como vimos o regime cível, consagra plenamente o princípio da coincidência.
Vejamos agora um segundo critério: o da extensão da personalidade judiciária aos ministérios. De acordo com o critério da coincidência para se aferir da personalidade judiciária, a resposta natural para um acto praticado por um órgão da pessoa colectiva de direito público como o Estado, seria precisamente, o Estado. Contudo, a lei, devido ao elevadíssimo número de litígios que existiriam chamando o Estado a estar em juízo, vem reconhecer personalidade judiciária aos ministérios. Os ministérios tornam-se assim sujeitos processuais, tornam-se entidades com personalidade judiciária, no âmbito de litígios, pelos actos ou omissões praticados pelos seus órgãos respectivos. Este critério é na verdade, uma extensão que a lei faz, a entidades que como sabemos não gozam de personalidade jurídica mas que irão gozar de personalidade judiciária.
Todavia, para se saber qual o ministério a demandar precisaremos sempre de recorrer ao critério da titularidade da relação material controvertida art.º10 nº1.[18]
É de notar ainda o benefício que a lei a concede, aos casos de erro na demanda da entidade em causa. Assim, dispõe o art.º 10 nº 4 que em caso de erro na identificação do autor do acto “considerando-se, nesse caso, a ação proposta contra a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, contra o ministério a que o órgão pertence”. Este regime visa facilitar as dificuldades da identificação do autor do acto e claramente fazer valer o conhecimento de mérito sobre questões de mera forma.
O erro na determinação do autor do acto é meramente irrelevante, como vimos, a sanação é feita ope legis[19] Por outro lado, a jurisprudência tem vindo, com base em disposições do ETAF, a reconhecer personalidade judiciária a entes que verdadeiramente não podem ser enquadrados na hierarquia do Estado nem são, no sentido clássico do termo, órgãos puramente administrativos. A atribuição da personalidade judiciária ao Primeiro-Ministro e ao Conselho de Ministros, viria da própria lei. Assim quando o ETAF no artigo 24.º/a)-iii) e iv) atribui competência ao Supremo Tribunal Administrativo, nos processos relativos a atos e omissões destas entidades, então isso deveria pressupor a respectiva personalidade judiciária[20]
Assim é de atribuir, a personalidade judiciária ao Conselho de Ministros e ao Primeiro-Ministro, apesar de não constarem do art.º 10[21].
Para parte da doutrina, a referência a ministérios no art.º 10 nº2 do CPTA inclui também a Presidência do Conselho de Ministros, servindo este último como centro de imputação dos actos e omissões do Conselho de Ministros[22].
Analisemos o terceiro critério, o da extensão da personalidade judiciária aos órgãos administrativos. De acordo com o art.º 10/ 6, os órgãos deverão ser a entidade com personalidade judiciária, nos litígios entre órgãos. Na realidade, a lei visa centrar a susceptibilidade de ser parte, na entidade que praticou ou emitiu o acto. Mais do que a pessoa colectiva, é o órgão administrativo que agiu ou omitiu[23] que deve ter personalidade judiciária.
Vejamos agora o quarto critério, o de outras entidades públicas sem personalidade jurídica mas com personalidade judiciária.
Existem uma multiplicidade de entes destituídos de personalidade jurídica, a que a doutrina tem vindo a reconhecer personalidade judiciária. Não são abrangidos pelo critério de extensão do art.º 10 nem podem ser enquadráveis como ministérios nem qualificados como meros órgãos administrativos inseridos na esfera do Estado ou de uma qualquer pessoa colectiva de direito público. Refiro-me, portanto, às entidades elencadas no art.º 24 .º/1-a) ETAF.Além daquelas já referidas, enquandram-se neste critério, entidades como o Tribunal de Contas ou o Conselho Superior de Defesa Nacional. É reconhecido ao STA competência para dirimir os litígios, logo em primeira instância, que envolvam estas entidades. Seria, no mínimo curioso, que qualquer destas entidades pudesse estar em presente em juízo, nos termos referidos, mas não gozasse de personalidade judiciária.[24]
Deve também ser reconhecida personalidade judiciária, apesar de não contar do elenco do art.º 10 do CPTA ou do art.º 24 do ETAF, às Regiões Autónomas[25].
Analisemos a quinta categoria de situações. Aqui o critério será a das entidades administrativas independentes sem personalidade judiciária. Mais uma vez, teremos de recorrer ao art. 10 do CPTA cuja epígrafe é a legitimidade passiva.
Como sabemos, existem várias entidades que integram a chamada “Administração Independente”. São entidades que formalmente pertencem à pessoa colectiva pública Estado, mas não integram a hierarquia do mesmo uma vez que gozam de independência e autonomia para a prossecução dos seus fins. Assim, para aferir da existência de personalidade judiciária, poderemos recorrer, num primeiro momento, ao já conhecido critério da coincidência constante do art.º10 nº2. Devemos analisar os vários diplomas que constituem estas entidades, para aferirmos se têm ou não a qualidade para estar em juízo. Se tiverem personalidade jurídica terão personalidade judiciária. Até aqui nada de novo.
Contudo, o nº 3 do mesmo artigo vem estabelecer que deverá ser o Estado ou a pessoa colectiva pública a ser chamada em juízo quando estas entidades não gozem de personalidade jurídica. Assim, por exemplo, entidades como o Provedor de Justiça ou a Comissão Nacional de Protecção de Dados deveriam ser representados pelo Estado[26].Contudo, na disposição imediatamente seguinte, o art.º 11 nº2 do CPTA, vem impedir que o Estado seja representado pelo Ministério Público. A melhor solução será permitir que a entidade administrativa independente possa estar em juízo, apesar de não gozar de personalidade jurídica. Esta interpretação baseia-se no facto de art.º 10 nº 4 ser uma ressalva ao “disposto nos dois números anteriores”. Assim, considerando-se a acção proposta contra o Estado, a citação poderá ser feita ao Estado, que terá poderes para constituir advogado ou licenciado em direito para a representar[27].
4.4. Consequências da falta de personalidade judiciária
Importa agora analisar os efeitos da não existência deste pressuposto processual específico. No regime da LPTA, a falta de personalidade judiciária, do ente em questão, fosse ele um órgão ou serviço, era sancionada com a absolvição do réu da instância[28]. Alegava-se no sentido de ser um pressuposto insanável, uma vez que, não encontrava espaço de aplicação no art.º 8 do anterior CPC.
O CPTA estabelece no art.º 89 que “obstam nomeadamente ao prosseguimento do processo” os fundamentos aqui elencados. Vejamos o que acontece, quando falta a personalidade judiciária do réu.
Hoje, a questão não é líquida. Existe jurisprudência nos dois sentidos.
Para a maioria dos tribunais administrativos, o desrespeito pelo princípio da coincidência, é insusceptível de ser suprida, quer oficiosamente quer a convite das partes[29].Existe, contudo, jurisprudência minoritária, que considera a falta do pressuposto suprível, devendo ser dada ao autor a possibilidade de aperfeiçoamento da petição inicial[30].
Analisemos os argumentos das duas teses.
Primeiro, a que nega a possibilidade de sanação da não verificação de personalidade judiciária. Argumenta-se de que não cabe, ainda na esteira da jurisprudência anterior, nos casos de possibilidade de sanação do da falta de personalidade judiciária do actual art.º14 do CPC (anterior art.º8).O regime cível permite a sanação da falta deste pressuposto, mediante a intervenção da administração principal e ratificação ou repetição do processado, quando é demandada a sucursal, agência, filial, delegação ou representação. Ora, intentada uma ação (ressalvados os casos de litígios interorgânicos, administração independente ou de entes a quem a lei reconhece legitimidade mas não personalidade judiciária) contra um órgão, quando quem deveria ser chamado, era a pessoa colectiva, a consequência terá de ser a da absolvição do réu da instância. O próprio Supremo Tribunal Administrativo refere que é um ónus de “fácil cumprimento” e que existem erros de “tamanha evidência” que só são possíveis por “extremo descuido ou hostilidade perante o regime legal”[31].
Vejamos agora, a posição defendida por aqueles que permitem a sanação através de convite à parte ou mesmo de sanação oficiosa. Primeiro, vejamos os argumentos da doutrina e só depois os da jurisprudência. Para determinados autores, em particular, Esperança Mealha, poder-se ia invocar o facto de o erro de intentar a ação contra o acto em vez da pessoa colectiva ser irrelevante art.º 10 nº4 in fine. Por outro lado, pode alegar-se a existência de casos em que se atribuem personalidade judiciária, a entes sem personalidade jurídica, visto que é a esses órgãos a quem a ação ou omissão é imputável[32]. A ilustre autora, relembra, num outro argumento a posição doutrinária de por aplicação analógica do art.º 8 do CPC, se defender que quando demandado um organismo do Estado sem personalidade judiciária, esta poder ser sanada com a intervenção do Estado e a ratificação do processado[33]. Outro argumento prende-se com a dificuldade prática de identificação da entidade. A multiplicidade de ações às quais são aplicáveis os critérios de extensão de personalidade é baseada num conceito indeterminado, cuja interpretação pode conduzir a resultados díspares[34]. Por último, a própria organização administrativa, devido às omnipresentes alterações legislativas ou mesmo devido à morfologia dos entes que a integram, torna extremamente difícil para o autor a identificação do ente a demandar. Não é tarefa fácil, em muitos casos, saber se existe ou não personalidade jurídica.
A ilustre autora, argumenta ainda, que a insusceptibilibilidade de sanação representaria um “contra-ciclo” no novo contexto do contencioso administrativo, permitindo a imposição de obstáculos formais, perante questões de mérito[35]. Vejamos sobre este ponto a jurisprudência. O STA, invocando os princípios constitucionais de acesso á justiça e à tutela jurisprudencial efectiva (artigos 20.º e 268/4 CRP), o princípio “anti-formalista” do CPTA, considera que se deve considerar desculpável o erro de identificação sempre que nos termos da petição possa divisar-se, sem dúvida, o verdadeiro (embora que incorrectamente designado) objecto da impugnação.
O argumento para a possibilidade de sanação para outros autores seria diferente.A solução passaria pela formulação de um juízo sobre a “desculpabilidade” ou “não desculpabilidade” do erro na identificação do demandado[36].
Antes de tomar posição sobre o debate, cumpre clarificar a questão. Muitas vezes, a questão prende-se não com a errada identificação do demandado, enquanto sujeito processual, mas com uma errada identificação dos sujeitos. O regime cível actual, permite despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos actos processuais. Ao nível do contencioso administrativo, decisões judiciais recentes vêm permitir à luz dos mesmos princípios e fundando-se nos anteriores artigos 508.º/2 e 467.º/-a)do CPC, que se profira despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Quanto à errada identificação do sujeito.Inclino-me, para a primeira posição no sentido de permitir a possibilidade de sanação. Além dos motivos já referidos é que a melhor se compadece com o actual regime do CPTA. A forma não pode vencer o conteúdo. Não pode ser o autor penalizado, pela volatilidade das variações dos estatutos jurídicos dos entes com que se relaciona, sejam entidades públicas ou privadas, quando ajam ao abrigo de relações jurídico-administrativas art.º 10 nº 7. Permitir que a parte corrija o articulado será a melhor solução Concedendo um prazo razoável, o autor poderá investigar mais detalhadamente o ente em causa, sem sofrer a imediata penalização de absolvição do réu da instância. A sanação oficiosa obrigaria os tribunais a um esforço adicional que só atrasaria o processo de decisão. O autor, se bem que ainda possa gozar de fundadas dúvidas na identificação do demandado, vê aproveitado o seu articulado. Só esta solução atribui efectividade no plano fáctico ao princípio da economia processual e à tutela jurisdicional efectiva.
A personalidade judiciária não está expressamente prevista no CPTA. Assim, existem vários critérios para identificar o ente em causa. A primeira via, segue o critério da coincidência. Será a regra para a maior parte das acções administrativas (acções administrativas especiais e comuns).Perante um ente com personalidade jurídica existirá personalidade judiciária. É este critério que vigora no regime cível. Contudo, o CPTA, distanciando-se da lógica da lei anterior (LPTA), vem atribuir esta qualidade aos ministérios e aos órgãos administrativos. É uma extensão que resulta da própria lei. Em rigor, também no regime cível, determinadas realidades como a herança jacente, vêm reconhecidas essa qualidade, apesar de não serem juridicamente reconhecidas como pessoas. Em ambos os casos o legislador, por motivos vários, alargou esta qualidade a entes que no nível substantivo, não gozam deste atributo. Por outro lado, talvez fosse desejável a consagração expressa deste instituto, autonomizando-o, pelo menos formalmente do regime da legitimidade passiva art.º 10 nº2. Não só traria fim ao debate sobre os efeitos da sua não verificação, como permitiria ao autor identificar o demandado, através de um serie de critérios expressos na lei. Os vários critérios apurados pela jurisprudência e pela doutrina demonstram a carência de uma consagração expressa. A própria natureza da Administração pública, a constante metarmofose dos entes que a compõe levam-me a concluir que se trata de um instituto independente.
Apesar de nos seus traços formais remeter ao regime cível, a verdade é que contém especificidades próprias e únicas. A remissão supletiva para o Código de Processo Civil, não resolve todos os obstáculos. Longe disso. É necessária uma interpretação de várias normas do CPTA para o autor saber quem deve efectivamente demandar. Em suma, estamos perante um instituto próprio do contencioso administrativo e não perante uma realidade com meras especificidades.
Bibliografia:
Trabalho realizado por Francisco Rodrigues nº 20904; subturma 4; 4º ano
[1] V.Vieira de Andrade, ob . cit
[2] Vieira de Andrade, ob, cit pag 277.
[3] Vieira de Andrade, ob. cit, pag, 274. Existem casos em que o seu conhecimento não é possível no despacho saneador, como a legitimidade, mas a lei vêm impor a concentração destes pressupostos neste momento.
[4] Marques, Remédio, ob cit pag 441.
[5] “As excepções dilatórias são de conhecimento oficioso pelo tribunal (art 578 do novo CPC) ou seja, não pode entender-se que, a larga maioria, das excepções dilatórias são apenas aquelas cujo relevo depende da vontade do réu (em alega-las).Apenas a incompetência relativa depende de alegação por parte do réu” - Remédio Marques, ob cit pag 442.
Cumpre clarificar a questão da incompetência. Na jurisdição administrativa, a incompetência no âmbito da jurisdição e as questões de competência dentro do âmbito de jurisdição são sempre de conhecimento oficioso- Mário Aroso de Almeida ob cit.
[6] Esta definição é da autoria de Bunsen, adoptada por Antunes Varela, ob.cit, pag. 108.
[7] Vieira de Andrade, ob cit, pag 279.
[8] Remédio Marques, ob cit pag 338.
[9] José Lebre de Freitas, ob, cit, pag 50. O autor chega a reconhecer que sem a extensão do instituto a entes sem personalidade jurídica, a figura perderia a sua utilidade.
[10] De acordo com o disposto neste artigo, a herança jacente e os patrimónios autónomos; as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais; as sociedades civis; as sociedades comerciais; o condomínio resultante da propriedade horizontal; os navios; gozam de personalidade judiciária. O “critério da afectação do acto” que se aplica às sucursais art.º 13 do CPC também é utilizado para estender esta qualidade a um ente sem personalidade jurídica.
[11] O próprio CPTA no seu art.º 1 determina que esgotado o próprio diploma e as disposições do ETAF, a lei processual civil será supletivamente, o mecanismo a recorrer.
[12] Era um verdadeiro” trauma de infância” do Contencioso Administrativo como refere Vasco Pereira da Silva, cit, pag 233 a 241.
[13] Esperança Mealha, ob, cit pag 11.
[14] Esperança Mealha, ob, cit pag 11.
[15] Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2002, pag 77.
[16] Esperança Mealha, ob, cit, pag 6.
[17] Como vimos, o critério alterou-se.
[18] Esperança Mealha , ob, cit pag 15.
[19] Mário Aroso de Almeida/ Carlos Fernandes Cadilha, ob, cit., pag 90.
[20] Esperança Mealha ob, cit, pag 19.
[21] Acórdãos do STA, 12.4.2007 e 05.05.2010.
[22] Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob, vit, pag 85.
[23] Luís Carvalho Fernandes, ob, cit pag 509.
[24] Por ordem: Presidente da República, Assembleia da República e o seu Presidente, o Tribunal de Contas e o seu Presidente, o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal de Contas e o seu Presidente…
[25] Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob, cit.
[26] José Lucas Cardoso, ob, cit, pag 46 a 68
[27] É esta a posição de Esperança Mealha ob, cit, pag 22
[28] Acórdão do STA, 3.11.2005
[29] Por exemplo no Acórdão do Tribunal de Círculo administrativo Norte de 19 de Julho de 2007
[30] A título de exemplo no Acórdão do TCAS de 22.4.2010
[31] Acórdão STA de 3.5.2005.
[32] Esperança Mealha ob, cit, pag 43 e ss
[33] Esperança Mealha, obra citada, página 44, citando Miguel Teixeira de Sousa, Estudos…, cit, página 139.
[34] Esperança Mealha, obra citada pagina 46.Veja-se o mais que paradigmático exemplo da autora
[35] Esperança Mealha ob, cit, pag 45
[36] Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha na obra citada, criticam precisamente este juízo de “desculpabilidade”.
A reforma do contencioso administrativo introduziu um mecanismo processual novo na Justiça Administrativa que permite reagir contra omissões ilegais de normas administrativas cuja adopção seja necessária para dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação. [1]
A figura nasceu inspirada na pronúncia de inconstitucionalidade por omissão prevista e regulada no artigo 283º da Constituição da Republica Portuguesa. Todavia, o artigo 77º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado como “CPTA”) consegue ir mais longe pois, para além de conferir ao tribunal o poder de dar conhecimento da situação de omissão ao órgão competente, atribui também o poder de fixar o prazo, não inferior a seis meses, dentro do qual a omissão deverá ser suprimida (artigo 77º, n.º 2 do CPTA) [2]. Segundo aquele preceito constitucional, “quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente”. O legislador seguiu, assim, uma via intermédia entre a solução de atribuir ao juiz um mero poder de declaração da omissão e a solução, de alcance mais forte, de lhe atribuir o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido.
Quanto à legitimidade para requerer esta acção, é admitida a acção popular e pública, relativamente aos interessados comunitários referidos no artigo 9º, n.º 2 do CPTA, bem como a legitimidade de quem alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão. O n.º1 do artigo 77.º do CPTA não cria, no entanto, um regime específico, devendo entender-se que alegação de “prejuízo” diz respeito a uma posição jurídica do particular.
É necessário frisar também que, no entendimento do Senhor Professor PEREIRA DA SILVA, estão em causa os regulamentos de execução, que visam detalhar e desenvolver uma certa lei, mas também os autónomos ou independentes, que não se referem a nenhuma lei em especial e em que a Administração possui uma maior margem de conformação normativa. Pense-se, por exemplo, na omissão de elaboração de planos urbanísticos ou de ordenamento territorial. Ora, há uma diferença entre a vinculação quanto à exigência de emissão da norma e a discricionariedade quanto ao seu conteúdo. Por esse motivo, deve-se considerar que, mesmo os regulamentos autónomos ou independentes se destinam a concretizar actos legislativo e, por isso, a dar exequibilidade a actos legislativos carentes de regulamentação”, sejam estes a lei de habilitação ou mesmo o ordenamento jurídico no seu conjunto.
Apenas nas situações em que o legislador devolva para a Administração a decisão de emanar normas sobre determinada matéria fica afastado o pressuposto subjacente ao artigo 77.º do CPTA. A concessão de discricionariedade quanto ao an da emanação normativa impede, sob pena de ofensa do princípio se separação de poderes, qualquer decisão judicial dirigida a constranger a Administração à emissão de um regulamento.
Atendendo ao conteúdo algo ambíguo da sentença, surge, então, a questão de saber qual a natureza da pronúncia judicial que pode ser emitida. Ainda que a formulação legal pareça apontar para uma pronúncia declarativa, permite-se que a sentença tenha efeitos cominatórios, já que prevê a fixação de um prazo para a adopção das normas regulamentares. Ora, tendo em conta que se encontra associada a esse prazo, e ainda que fique aquém de uma verdadeira e própria sentença condenatória, parece estar mais próxima de uma sentença de condenação do que uma sentença meramente declarativa ou de simples apreciação.
O Senhor Professor AROSO DE ALMEIDA defende aproximar-se mais de uma sentença de condenação, justificando que a eventual inobservância deste prazo tratar-se-á de um acto de desobediência em relação à sentença, o que permite a fixação de um prazo limite, com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão (arts. 164.º/4, d); 168.º e 169.º do CPTA). Tendo em conta as circunstâncias concretas em presença, considera possível o tribunal proceder à imposição de sanção pecuniária compulsória logo no momento em que é reconhecida a situação de omissão (arts. 3.º/2; 44.º e 49º do CPTA) ou, ainda, no caso de inobservância do prazo definido em sentença.
O Senhor Professor PEREIRA DA SILVA afirma que a sentença de declaração de ilegalidade por omissão “vai mais longe do que as sentenças congéneres do Tribunal Constitucional” e reconhece o progresso que o regime actual representa face à situação anterior à reforma. Não obstante, entende que se deveria ter sido estabelecido a possibilidade de condenação da Administração na produção da norma regulamentar devida, assim como é possível para os actos administrativos. Ainda assim, não poria em causa o princípio da separação de poderes, uma vez que seria necessário distinguir entre duas situações:
a) existindo um dever legal de emissão de regulamento, o tribunal devia limitar-se à condenação da emissão de regulamento, cabendo à Administração a escolha do conteúdo, no âmbito do exercício do seu poder discricionário, nos limites fixados pela lei regulamentar e demais leis aplicáveis. O juiz poderia, em último caso, fornecer algumas indicações sobre o modo mais correcto de exercício deste poder;
b) não existindo apenas o dever legal de emitir regulamento, mas ainda a obrigatoriedade dele possuir um conteúdo pré-determinado pelo legislador, devia haver a emissão de uma sentença de condenação na emissão do regulamento com determinado conteúdo.
Dado o exposto, podemos concluir que seria preferível a consagração da acção de condenação na emissão de regulamento devido, na medida em que a determinação do conteúdo seja necessário para suprir a situação de ilegalidade. Dada a similitude entre as situações de omissão de actos administrativos e as situações de omissão de normas regulamentares acompanhamos a posição do Senhor Professor PEREIRA DA SILVA. Torna-se, no entanto, imprescindível o respeito pelo princípio da separação de poderes, não sendo, por isso, possível determinar o conteúdo quando o conteúdo da norma for ditado por opções discricionárias da Administração. De facto, o regime actual representa um progresso em relação ao anterior, deixando margem de manobra para que, em futuras revisões, seja criada a acção condenatória na emissão de regulamento devido, à semelhança do que se passa com os actos administrativos devidos.
[1] - Esta solução tinha já sido defendida por JOÃO CAUPERS, ainda antes da reforma, ao considerar uma “violação de um dever jurídico de regulamentar, decorrente, expressa ou implicitamente, da norma legal”, levando assim à necessidade de os tribunais administrativos poderem proferir uma sentença que declarasse aquela violação e fixasse um prazo para produzir a regulamentação em falta.
[2] - O Senhor Professor VIEIRA DE ANDRADE considera que a lei se deveria referir a um prazo “razoável”, sem limites quantitativos, até porque pode acontecer que seja exigível que a omissão seja suprimida em menos de seis meses e não parece que esse limite mínimo cautele interesses administrativos dignos de protecção.
A ACÇÃO POPULAR
Introdução
A origem da acção popular é apresentada por vários autores como correspondendo à “actio popularis” do direito romano, que conferia ao cidadão romano a legitimidade para interpor acções com o fim de protecção dos interesses públicos. Muito frequentes eram também as “actio pró libertati” para a defesa da liberdade e a “actio pró tutela”para a defesa do pupilo[1].
No ordenamento jurídico português a acção popular desenvolveu-se tendo por base a influência das acções populares romanas.
É a partir do séc. XIX, nomeadamente por consequência da Revolução Francesa que começam a surgir algumas consagrações nos direitos nacionais da acção popular.
Desprezada no direito medieval e extinta no regime feudal, ressuscitou no direito moderno, em matéria penal e eleitoral.[2]
A CRP de 1976 consagrou, na sua versão original, no artigo 49.º, n.º2 a figura da acção popular. Após a revisão constitucional de 1982 passando para o artigo 52.º, n.º2 e, posteriormente, para o artigo 52.º, n.º3.
A acção popular apresenta-se como um meio jurisdicional que consagra um “direito de acção judicial” [3] como expressão do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição da Republica Portuguesa (doravante CRP)[4], onde a legitimidade para a competente propositura é consideravelmente alargada.
A acção popular no contencioso administrativo
A acção popular administrativa vem consagrada no novo CPTA, aprovado pela Lei 15/2002 de 22 de Fevereiro. O novo contencioso administrativo veio trazer algumas alterações ao regime da acção popular, nomeadamente pela revogação expressa do artigo 822.º do Código Administrativo.
A acção popular relativa ao Contencioso administrativo português, anterior ao CPTA, resumia-se à consagração do artigo 822.º do Código Administrativo, relativo ao recurso directo de anulação contra deliberações ilegais dos órgãos das autarquias locais, o artigo 59.º, n.º1 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, sobre contencioso eleitoral e o artigo 369.º do Código Administrativo quanto à acção supletiva intentada no âmbito dos tribunais administrativos.[5]
Após a entrada do CPTA, o regime da acção popular alterou-se, podendo verificar-se, nos termos do artigo 9.º, n.º2 do CPTA, que de acordo com a legitimidade activa das partes, esta é atribuída, independentemente de haver interesse pessoal na demanda, portanto: qualquer pessoa; associações e fundações defensoras dos interesses em causa; a autarquias locais e ao Ministério Público. Esta legitimidade é destinada à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado.
Dentro da acção popular verificamos que existem duas modalidades: uma prevista no artigo 9.º, n.º2 e outra prevista no artigo 55.º, n.º2, ambos do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA). A primeira modalidade diz respeito a acções que podem ser intentadas em defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estados, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, constituindo um direito de acção popular que a CRP consagra como um direito, liberdade e garantia de participação política (artigo 52.º, nº3 da CRP). A segunda modalidade é a chamada acção popular local, a qual se refere à impugnação de actos administrativos praticados por órgãos autárquicos, que qualquer cidadão recenseado pode intentar, de acordo com o artigo 55.º, n.º2 do CPTA.
As Partes
Em primeiro lugar é de referir que as partes são um dos elementos essenciais do processo administrativos. No processo declarativo são os sujeitos que nele figuram como autor e demandado.
Por regra, os processos são desencadeados por particulares que se dirigem aos tribunais administrativos alegando a ofensa de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido por parte de uma entidade pública. Esta é uma das dimensões, sendo no entanto a mais relevante, no sentido que envolve o exercício, por parte dos alegados lesados, do seu direito fundamental de acesso à justiça administrativa
Cumpre, porém, advertir que nem sempre a autoria, no processo administrativo, cabe aos particulares, na medida em que, no essencial, os processos administrativos se dirigem a fiscalizar a legalidade administrativa e o respeito pela legalidade da mesma, que é em si mesmo, um interesse público e onde as leis de processo administrativo são generosas no reconhecimento de legitimidade para a propositura de acções junto dos tribunais administrativos.
Legitimidade para defesa dos interesses difusos (artigo 9.º, n.º2 CPTA)
O artigo 9.º, n.º2 reconhece o direito de laçar mão de todo e qualquer meio processual, principal ou cautelar, existente no contencioso administrativo, para defesa dos valores que enuncia. Neste artigo deparamo-nos com um fenómeno de extensão de legitimidade, isto é, atribui-se legitimidade processual a quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha submeter à apreciação do tribunal.
Este preceito tem em vista o exercício por parte os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos (artigo 2.º, n.º1 da Lei n.º 83/95), do direito de acção popular para defesa de “valores e bens constitucionalmente protegidos”, o qual é reconhecido pela CRP como um direito fundamental de participação política, no artigo 52.º, n.º3. Apesar de esta não ser a única forma, é uma das formas de acção popular que são admitidas no contenciosos administrativo: uma forma de acção popular que se define pela defesa daqueles valores, constitucionalmente protegidos.
O exercício de poderes e a intervenção previstos no artigo 9.º, n.º2 do CPTA processa-se “nos termos previstos na lei”, esta remissão tem em vista a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto. De acordo com esta revisão ficamos com dois planos: Por um lado, no plano da legitimidade, o alcance de conferir legitimidade para a defesa de interesses difusos aos sujeitos aí referidos, desde que preencham os requisitos estabelecidos no artigo 3.º da Lei 83/95. Daqui podemos retirar que não existe qualquer ligação de uma situação de apropriação individual do interesse difuso lesado, como critério dominador para assegurar o exercício do direito de acção popular por qualquer cidadão. No que respeita às associações e fundações a sua legitimidade activa compreende os bens ou interesses cuja defesa se inclua no âmbito das suas atribuições.
Por outro lado, no plano processual, o legislador entendeu que os processos quando intentados nestas circunstâncias apresentariam especificidades que justificariam a adaptação ao modelo de tramitação normal, que se encontra previsto nos artigos 13.º e ss da Lei 83/95.
Importa por fim explicar o que se entende por interesses difusos. Interesses difusos são interesses “de todas as pessoas integrantes de uma comunidade, pelo simples facto de o serem”[6], são “interesses individuais, mas indisponíveis e inseparáveis da pertença de uma comunidade”[7]. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira o interesse difuso é “a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada ”[8]. Os interesses difusos são, assim, direitos supra-individuais que pertencem “a todos e a ninguém”[9] , pertencem a uma pluralidade de titulares, encontram-se dispersos e disseminados por estes.
Os bens sobre os quais incidem os interesses difusos “podem ser gozados de uma forma corrente e não exclusiva, pois os seus titulares, ao beneficiarem de um certo bem, não impedem que outros possam igualmente desfrutar desse mesmo bem”.[10]
Em conclusão, o interesse difuso é um interesse:
¾ Comunitário, com uma dupla dimensão individual e supra-individual;
¾ Os seus titulares são indeterminados;
¾ Incide sobre um bem indivisível e insusceptível de apropriação individual exclusiva;
¾ Não existe qualquer relação jurídica entre os titulares;
¾ Não existe uma entidade exponencial que os agregue.
Conclusão:
A acção popular é um meio por excelência de tutela dos interesses difusos. Está consagrada constitucionalmente no artigo 52.º, n.º3 e é regulamentado pela Lei 83/95 de 31 de Agosto (LAP).
Com este trabalho tentámos demonstrar que, o que se tem em vista em sede de interesses protegidos na acção popular que determina, precisamente, a atribuição de legitimidade aos cidadãos, é a existência de direitos difusos. Isto é, interesses indivisíveis, indisponíveis, intransmissíveis, irrenunciáveis e insusceptíveis de fraccionamento ou apropriação em exclusivo por um dos seus titulares.[11]
Trata-se de uma legitimidade atribuída aos cidadãos para defesa da constitucionalidade das normas jurídicas, apenas quanto a determinados interesses, bem identificados com os interesses tutelados na acção popular, portanto, todos aqueles direitos ou interesses não susceptíveis de apropriação individual cuja defesa deva estar ao alcance de qualquer elemento da comunidade considerada.
Daí a consagração dos cidadãos como órgãos especiais de iniciativa na fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, nos termos actualmente previstos no artigo 281.º, n.º2, g) da CRP, quanto aos interesses difusos a aos interesses individuais homogéneos, que justifica o referido alargamento da legitimidade em sede de acção popular de inconstitucionalidade no nosso ordenamento.
Bibliografia
- “ A Acção Popular e a Protecção do Investidor ”, in http://www.cmvm.pt/NR/rdonlyres/4299110D-8B66-45F8-B4C4EE25FBAFA13B/10139/AcçãoPopular.pdf
- Direito Civil – “Teoria Geral III, Relações e Situações Jurídicas”, Coimbra Editora, 2002.
[1] Cfr. Mariana Sotto Maior, O direito da acção popular na Constituição da República Portuguesa, Documentação e Direito Comparado, nºs 75/76, 1998, p. 247-248; e Paulo Otero, “A Acção Popular: configuração e valor no actual Direito Português ”, in ROA, ano 59, vol III (Dez.1999).
[2] Mariana Sotto Maior, op.cit., p. 249 e ss; Luís Fábrica, in “A Acção Popular no Projecto do Código do Processo nos Tribunais Administrativos”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº21, Maio/Junho, 2000, p.16 e ss; Paulo Otero, in “A Acção Popular”: configuração e valor no actual Direito Português ”, in ROA, ano 59, vol III (Dez.1999).
[3] Nuno Sérgio Marques Antunes, op. cot, p.27, considera a acção popular como “direito de acção judicial atribuído a qualquer cidadão no gozo dos seu direitos civis e políticos ou a pessoas colectivas que visem a defesa de interesses determinados que permite requerer a intervenção de órgãos jurisdicionais do Estado, com o fim de assegurar a tutela de certos interesses comunitários aos quais a CRP confere uma protecção qualificada, bem como de requerer a reparação de danos que lhe sejam causados”.
[4] Redacção do art.20.º da CRP: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”
[5] Esta última, considera José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, p.170, nota 293, encontra-se actualmente em vigor. Esta consideração deve ter-se por referência à revogação expressa pelo CPTA apenas da Parte IV do Código Administrativo, não incluindo, portanto, o art.369.º.
[7] Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Teoria Geral III, Relações e Situações Jurídicas, Coimbra Editora, 2002, p. 108
Estrutura:
1 – Introdução
2 – Legitimidade activa no CPTA
2.1 – Das acções administrativas especiais
3 – Conclusão
4 - Bibliografia
1 – Introdução
O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado como “CPTA”), ao contrário daquilo que se verifica no Código de Processo Civil (artigo 26.º), regula separadamente as matérias da legitimidade activa e da legitimidade passiva, tal como poderemos retirar dos artigos 9.º e 10 CPTA, sendo o primeiro dedicado à legitimidade activa e o segundo à passiva. O art.º 9.º, nº 1 CPTA atribui ao autor legitimidade activa quando este seja titular da relação material controvertida, ao passo que o art.º 10.º CPTA exige como critério de legitimidade passiva, que o réu possua legitimidade passiva quando for a outra parte na mesma relação material ou quando se tratar de pessoa ou entidade titular de interesse contraposto ao do autor.
Nesta breve dissertação, iremos observar com especial atenção a legitimidade activa, de modo a identificar os vários traços “objectivistas” que permanecem no CPTA, bem como compreender as diferentes soluções consagradas pelo legislador para as acções administrativas especiais, que simbolizam uma verdadeira extensão ao critério geral emanado pelo art.º 9.º, nº 1 CPTA.
2 – Legitimidade activa no CPTA
Como atrás referi, o tratamento da legitimidade activa encontra-se previsto no art.º 9.º, n.º 1 CPTA, sendo de notar que a mesma não se esgota neste preceito. De facto, aquele critério geral poderá ser derrogado por um conjunto de soluções previstas pelo CPTA, que visam regular as acções administrativas especiais (que serão aprofundadas no ponto 2.1), não obstante disso, esse critério geral possui uma enorme relevância, contendo características das matrizes que resultaram na produção do CPTA.
Tal como se encontra previsto no preceito, terá legitimidade activa a pessoa ou a entidade que seja titular de uma relação material controvertida. Daqui poderemos extrair a matriz subjectivista do actual CPTA, que, tendo abandonado parcialmente a matriz francesa, adoptou o modelo germânico como principal fonte de inspiração.
No entanto, e tal como referi, este abandono é meramente parcial, na medida em que o legislador não teve o intuito de adoptar um subjectivismo absoluto, procurando antes restringi-lo com recurso ao objectivismo, ora, o art.º 9.º, nº 1 CPTA acaba por observar esse limite, na medida em que, uma pessoa ou entidade que não seja titular da relação material controvertida, poderá interpor uma acção contra a Administração quando cause indirectamente um dano ao mesmo, o que parece ser uma solução bastante razoável, dado que a opção por um subjectivismo absoluto poderia facilmente resultar em situações de injustiça.
Um outro exemplo claro da permanência de determinados “traços” objectivistas no actual CPTA poderá ser verificado no n.º 2 do art. 9.º que reconhece ao Ministério Público, Autarquias Locais, Associações e Fundações defensoras dos interesses públicos e, em geral, a qualquer pessoa singular, enquanto membro da comunidade, o direito de lançarem mão de todo e qualquer meio processual, principal ou cautelar para defesa dos valores que enuncia, ou seja, neste caso, terá legitimidade processual quem não alegue ser parte numa relação material controvertida, visando antes o exercício no âmbito do contencioso administrativo por parte dos cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos (art.º 2.º, n.º1 da Lei n.º 83/95) do direito de ação popular para defesa de bens e valores constitucionalmente protegidos, sendo ainda consagrada a acção pública, que permite ao Ministério Público actuar de forma a defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público (art.º 51.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Para além daquele exemplo, ser-nos-á possível observar que as diversas acções administrativas especiais que serão tratadas adiante, fornecem elementos que nos permitem contemplar a decisão do legislador em procurar um equilíbrio entre a dimensão subjectiva e a dimensão objectiva, no intuito de garantir um tutela eficiente não só àqueles que são titulares de uma situação material controvertida, mas igualmente a todos os que se sentirem lesados nos seus interesses e direitos, aos quais será fornecida tutela para salvaguardar quaisquer interesses colectivos, difusos ou públicos.
2.1 – Das acções administrativas especiais
Após a análise do critério geral do reconhecimento da legitimidade activa, deveremos agora centrar-nos na questão basilar em análise: a legitimidade activa nas acções administrativas especiais.
De facto, o critério geral do art.º 9.º, n.º1 CPTA, será afastado quando, ao litígio em causa, seja aplicável qualquer um dos critérios especiais previstos nos artigos 40.º, 55.º, 68.º, 73.º e 77.º sendo a sua análise de enorme relevância para o estudo da matéria da legitimidade, não deixando no entanto de referir que ao critério especial previsto para o art.º 40.º CPTA (relativo às acções sobre contratos) será dada uma atenção menos aprofundada que aos restantes, dado que a apenas estes é exigida a forma de acção administrativa especial.
Assim sendo, e naquilo que concerne ao art.º 40.º CPTA, este veio responder às fragilidades do anterior regime, que apenas conferia legitimidade às entidades contratantes, reconhecendo agora legitimidade aos seguintes intervenientes: partes na relação contratual (art.º 40.º, n.º 1 al. a) CPTA); Ministério Público (artº. 40.º, n.º1 al. b) CPTA, sendo que esta competência advém igualmente do disposto no art. 51 ETAF); demais pessoas e entidades que, nos termos do art.º 9.º, n.º2 CPTA, podem agir em defesa dos valores que esse preceito enuncia (art.º 40.º, n.º1 al. b) CPTA); por quem, tendo tomado parte no procedimento que procedeu a celebração do contrato (p.e.: concurso público), tiver impugnado as decisões tomadas no âmbito desse procedimento, com fundamento na ocorrência de ilegalidades pré-contratuais no âmbito do procedimento que precedeu a celebração do contrato (art.º 40.º, n.º1 al. d) CPTA); pelos participantes no procedimento que procedeu a celebração do contrato, por alegada desconformidade entre o clausulado do contrato e os termos resultantes da adjudicação (art.º 40.º, n.º1 al. e) CPTA) – problema aqui em causa será a inserção de cláusulas no contrato onde não deveriam constar; por quem alegue que o clausulado do contrato não corresponde aos termos que tinham sido inicialmente estabelecidos, e que justificadamente o tinham levado a não participar no procedimento pré-contratual, embora preenchesse os requisitos necessários para o efeito (artº. 40.º, n.º1 al. f) CPTA) – ou seja, houve um interessado que, tendo em conta os parâmetros do concurso, afastou-se do mesmo, no entanto, observou que o contrato celebrado não obedeceu aos requisitos que o “impediram” de concorrer, tendo sido claramente lesado; por quem tenha sido prejudicado pelo facto de não ter sido adoptado o procedimento pré-contratual exigido por lei (art. 40.º, n.º 1 al. c) CPTA); por quem tenha sido ou possa vir a ser previsivelmente lesado nos seus direitos ou interesses pela execução do contrato (art. 40.º, n.º 1 al. g) CPTA – esta é uma situação muito ampla competindo à jurisprudência delimitá-la, estando esta situação pensada para os casos das empresas que desenvolvem uma atividade em regime de concorrência de um setor de mercado onde exista concessão de um serviço público.
Para além destas situações, as ações dirigidas a obter a execução de contratos também podem ser propostas pelos titulares de direitos ou interesses em função dos quais as cláusulas contratuais tenham sido estabelecidas (art.º 40.º, n.º 2 al. b) CPTA), tendo esta situação especial relevância na medida em que visa garantir o cumprimento, por parte dos concessionários de serviços públicos dos deveres consignados no contrato em causa. De modo a consagrar a acção pública, é igualmente reconhecida legitimidade ao Ministério Público, quando esteja em causa a execução de cláusulas cujo incumprimento possa afectar um interesse público especialmente relevante, tal como previsto no art.º 40.º, n.º 2 al. c) CPTA, sendo igualmente observado o respeito pela acção popular no art.º 40.º, n.º 2 al. d) CPTA, que confere legitimidade aos particulares e entidades previstas no art.º 9.º, n.º 2 CPTA. Por fim, terá legitimidade activa a entidade que tenha sido preterida no procedimento que antecedeu a celebração do contrato (art.º 40.º, n.º 2 al. e) CPTA), de modo a que as entidades concorrentes possam impugnar o contrato em caso de incumprimento da entidade adjudicada, que a priori ofereceria condições mais vantajosas à entidade adjudicante, mas que acabou por incumprir essas condições.
Legitimidade para a impugnação de actos administrativos
Iniciando a análise dos critérios especiais que reconhecem a legitimidade activa a determinadas entidades e particulares e para as quais é exigível o recurso à forma de acção administrativa especial, observamos a legitimidade para a impugnação de actos administrativos, que se encontra prevista no art.º 55.º CPTA atribuindo oito categorias de pessoas e entidades legitimadas a impugnar actos administrativos pedindo a sua anulação ou declaração de nulidade.
Em primeiro lugar, terá legitimidade para impugnar quem alegue ser titular de um interesse pessoal e directo, designadamente por ter sido lesado pelos actos nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (art.º 55.º, n.º 1, al. a) CPTA). A exigência do requisito “interesse directo e pessoal” consubstancia o facto de, para ser impugnado um acto administrativo, não será necessário que esteja em causa uma ofensa a um direito juridicamente tutelado, mas antes a conclusão de que aquele acto, no momento em que é impugnado, estará a gerar determinadas consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, ou seja, poderá ser interposta em tribunal uma acção de impugnação de um acto administrativo por qualquer interveniente que, da impugnação daquele acto, retire uma vantagem jurídica ou económica.
Analisando agora os critérios do “interesse directo e pessoal”, importará salientar que com o acolhimento desta fórmula, o CPTA abandonou a referência feita ao “interesse legítimo” que era definido como o interesse que decorria do facto do seu titular haver sido desfavorecido no processo em que foi praticado, ou, quando tal critério fosse insuficiente, quando o interesse em causa fosse objecto de protecção jurídica, ainda que indirecta. Este “abandono” daquele critério deveu-se ao facto deste não apresentar uma real autonomia, podendo resultar em contradições ao próprio critério actualmente definido porque, em certos casos poderia claramente exigir que estivessem em causa interesses juridicamente tutelados.
Retomando a análise dos critérios efectivamente utilizados, será necessário efectuar uma distinção entre ambos, sendo que o interesse pessoal reporta-se a uma utilidade que o interessado poderá obter com a anulação ou declaração de nulidade daquele acto, ao passo que o critério do interesse directo pretende apurar se existe um interesse claramente actual em pedir a anulação ou declaração de nulidade do acto que é impugnado. A necessária cumulação destes critérios para apuramento da legitimidade do autor tem vindo a ser debatida, sendo que, perfilhamos da posição de Mário Aroso de Almeida, na medida em que considera que apenas o carácter pessoal do interesse dirá respeito ao pressuposto processual da legitimidade, tendo o carácter directo que ver com a questão de saber se o alegado titular do interesse tem efectiva tutela judiciária.
Adoptamos esta posição, pelo facto de consubstanciar um critério que atribui maior segurança aos destinatários e ao próprio intérprete, o que se deve à possibilidade de, em diversos casos, o apuramento do interesse directo do interessado ser de um grau de enorme dificuldade, com que a própria jurisprudência já se confrontou, apresentando algumas soluções que ilustram a enorme volatilidade do critério do interesse directo (Ac. do Pleno do STA de 15 de Novembro de 2001). Daqui poder-se-á extrair que, ao contrário do critério emanado no art.º 9.º, n.º 1 CPTA (da titularidade da situação jurídica controvertida), bastando a alegação do interesse.
O art.º 55.º, n.º1 al. b) CPTA, garante a previsão da acção pública, atribuindo legitimidade ao Ministério Público para impugnar todo e qualquer acto administrativo no âmbito do art.º 51.º ETAF.
A al. c) do n.º 1 do art.º 55.º CPTA reconhece, por sua vez, legitimidade às pessoas colectivas quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender. Esta previsão, resulta numa inovação do CPTA actual em relação ao anterior, na qual não constava esta situação (não obstante da jurisprudência ter reconhecido várias vezes que as entidades públicas poderiam impugnar actos administrativos em defesa de interesses próprios no âmbito de relações jurídicas inter-administrativas. Para que uma entidade colectiva possa impugnar um acto administrativo, será necessário que esse acto tenha incidência sobre algum dos interesses que lhe sejam legalmente reconhecidos, sendo de notar que não é necessário que o poder de impugnação esteja previsto no quadro de competências dos órgãos da entidade em causa.
Um outro aspecto de enorme relevância neste art.º 55.º, n.º 1, al. c) CPTA, reflecte-se no facto deste reconhecer legitimidade às pessoas colectivas privadas naquilo que concerne aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (visando garantir o exemplo por excelência, das associações de qualquer tipo poderem, no respeito pelo princípio da especialidade, agirem em processo na defesa dos direitos e interesses dos respectivos associados).
Foi igualmente incluída no âmbito do art.º 55.º CPTA (na al. d) do n.º 1) a possibilidade de um órgão administrativo de uma determinada pessoa colectiva de direito público poderem impugnar os actos praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva, o que, não só constitui uma situação inovadora, como igualmente complexa, dado os diversos problemas que poderá suscitar mas que, dado o tema dessa breve dissertação, não serão alvo de exposição.
Por sua vez, o art.º 55.º, n.º 1 al. e) CPTA, confere legitimidade a outras autoridades (que não o Ministério Público, cuja legitimidade já se encontra prevista na al. b) do respectivo artigo), possam impugnar actos em defesa da legalidade administrativa desde que tal legitimação resulte de lei avulsa.
O art.º 55.º n.º 1 al. f) CPTA vem reforçar a legitimidade das entidades previstas pelo art.º 9.º, n.º 2 CPTA, para que estas possam impugnar quaisquer actos que coloquem em causa algum dos valores previstos no mesmo preceito ou que sejam constitucionalmente tutelados.
Por fim, o art.º 55.º, n.º 2 CPTA garante a acção popular local, mantendo a tradição do nosso contencioso de impugnação de actos administrativos.
Legitimidade para pedir a condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido
A legitimidade em relação a esta matéria, encontra-se prevista no art.º 68.º CPTA, tornando-se necessária uma análise das cinco categorias de particulares ou entidades legitimadas para este tipo de acção.
O art.º 68.º, n.º1 al. a) CPTA atribui legitimidade a quem alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido dirigido à emissão do acto ilegalmente recusado ou emitido. Nesta matéria, deveremos ter em conta que, ao contrário daquilo que é previsto para a impugnação de actos administrativos (art.º 55.º, n.º 1 al. a) CPTA), não bastará a alegação de um interesse pessoal e directo, sendo antes necessária a titularidade de um interesse legalmente protegido à emissão de um acto, o que se deve à necessária apresentação prévia de um requerimento dirigido à Administração por parte de um particular ou entidade, que resulta num dever de decidir àquela (art.º 67.º, n.º 1 CPTA). Ou seja, rapidamente poderemos observar uma superior tutela subjectiva no âmbito dos pedidos de condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido, quando comparada com a tutela observada no âmbito da impugnação de actos administrativos, o que se deve fundamentalmente ao pressuposto de que os actos administrativos de conteúdo positivo tenderem a ser prejudiciais a um maior número de destinatários, carecendo por isso de um maior controlo.
Por sua vez, e a exemplo do que se sucede no art.º 55.º, n.º 1 al. c) CPTA, o art.º 68.º, n.º 1 al. b) CPTA reconhece legitimidade às pessoas colectivas públicas e privadas a pedir a condenação à prática, por parte da administração, de um acto legalmente devido, quando dessa não emissão ou decisão de emissão resultem danos para a esfera dos direitos e interesses que lhes cumpre defender. Nesta situação, deverá apenas ser avaliada a titularidade da pessoa colectiva em causa, de um direito ou interesse que a habilite a requerer a emissão de uma decisão por parte da administração.
De modo a salvaguardar a acção pública, o art. 68.º, n.º 1, al. c) CPTA, confere legitimidade ao Ministério Público para requerer a condenação à prática de actos administrativos legalmente previstos. No entanto, e diferentemente daquilo que sucede com a impugnação de actos administrativos (art. 55.º CPTA), a legitimidade conferida ao Ministério Público possui limitações (que não o abrangente critério do art.º 51.º ETAF), sendo que a primeira reside no facto do CPTA não atribuir um poder genérico ao Ministério Público de apresentar requerimentos que adstrinjam a Administração no dever de decidir, atribuindo-lhe esse poder apenas nas situações de omissão legal em que o dever da prática do acto de decidir estivesse expressamente previsto na lei. A segunda limitação resulta desta legitimidade ser atribuída para tutela dos interesses previstos no art.º 9.º, n.º 2 CPTA, impedindo por isso que o Ministério Público seja um “super-tutor” de todas as situações que consubstanciem um dever de decidir da Administração, o que não se verifica na matéria da impugnação de actos administrativos.
Em último lugar, mas não menos relevante, o art.º 68.º, n.º 1 al. d) CPTA atribui legitimidade das pessoas e entidades referidas no n.º 2 do art.º 9 CPTA (não valendo, logicamente, a remissão para o Ministério Público, dado que esta se encontra prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 68 CPTA).
Legitimidade para impugnação de normas
A matéria agora em análise, encontra-se prevista no art.º 73.º CPTA atribuindo a quatro categorias de pessoas e entidades legitimidade para requerer a declaração de ilegalidade de normas emanadas ao abrigo de disposições do direito administrativo.
O n.º 1 do art.º 73.º CPTA confere legitimidade a pedir a “declaração de ilegalidade com força obrigatória geral por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal em três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade”. A letra da lei, neste caso, parece ser bastante clara, demonstrando um clara tutela objectiva desta matéria, resultante da adopção do modelo germânico por parte do legislador português.
Por sua vez, o art.º 73.º, n.º 2 CPTA reconhece legitimidade a requerer a impugnação de normas cujos efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, salvaguardando a possibilidade deste pedido ser deduzido por umadas pessoas ou entidades previstas no art.º 9.º, n.º 2 CPTA para defesa dos valores ali enumerados.
Finalmente, o art.º 73.º, n.º 3 CPTA atribui o poder de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral sem necessidade da verificação de recusa de aplicação em três casos concretos, ao Ministério Público, podendo este pedido ser deduzido oficiosamente ou a pedido das pessoas ou entidades previstas no art.º 9.º, n.º 2 CPTA, o que aprofunda e vem cimentar a tutela objectiva existente em relação a esta matéria, devendo ainda ter em conta que este pedido do Ministério Público será obrigatório quando tiverem sido proferidas três sentenças de desaplicação das normas em causa.
Legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas
Naquilo que concerne a esta situação, importará ter em conta que ela se encontra regulada pelo art.º 77.º, n.º 1 CPTA, atribuindo legitimidade a três categorias de pessoas ou entidades para pedirem a declaração de ilegalidade por omissão de normas.
A primeira entidade referida, e de forma a consubstanciar a acção pública, é o Ministério Público que, a exemplo do que se verifica na matéria de impugnação de actos (art.º 55.º CPTA) e na matéria de impugnação de normas (art.º 73.º CPTA), possui uma legitimidade quase ilimitada, que encontra apenas como limite, a abrangência do art.º 51.º ETAF, ou seja, poderá ser dito que quando a matéria em causa seja a declaração de ilegalidade por omissão de normas, o Ministério Público poderá sempre ser parte activa na acção correspondente.
O art.º 77, n.º 1 CPTA, estende ainda a legitimidade para pedir a declaração de ilegalidade por omissão de normas, às pessoas e entidades que nos termos do art.º 9.º, n.º 2 CPTA, possam agir em defesa dos valores que o preceito enuncia, e por quem alegue um prejuízo resultante da situação de omissão.
3 – Conclusão
Através da exposição em análise, para além de uma suplementar compreensão da legitimidade activa no CPTA, ser-nos-á igualmente possível constatar diversos aspectos quanto ao mesmo, cuja explicitação se torna agora basilar.
Denota-se desde logo, o esforço do legislador em impedir o acolhimento de um subjectivismo absoluto, procurando sempre restringi-lo com “traços” objectivistas (note-se a contraposição entre a legitimidade conferida pelo art.º 55.º CPTA e aquela que é reconhecida pelo art.º 68 CPTA) o que acaba por resultar num sistema equilibrado e que nos parece ser capaz de tutelar os interesses que efectivamente importará proteger. Não obstante desse equilíbrio, não poderemos deixar de fazer notar que esta alternância constante cria alguns problemas ao intérprete, podendo, em última análise, ser prejudicial para o valor da segurança jurídica, fundamental para o regular funcionamento de qualquer ordenamento jurídico inserido num Estado de Direito Democrático (tal como é o caso de Portugal). No entanto, esta “modificação” para uma matriz mais subjectivista acaba por abolir alguns problemas de aplicação em relação ao anterior regime, o que poderá ser observado, por exemplo, na al. a) do n.º 1 do art.º 55.ºº CPTA, que resultou na consagração dos critérios do “interesse pessoal e directo” e na extracção do critério do “interesse legítimo” que, como foi explicitado, conduzia a uma dificuldade suplementar da aplicação do preceito.
Um outro aspecto de extrema relevância prende-se com a legitimidade que é conferida tanto à acção popular como à acção pública. Em relação à primeira, foi possível observar que em todos os preceitos, se encontra salvaguardada a possibilidade das pessoas e entidades previstas no n.º 2 do art.º 9 CPTA poderem interpor uma acção de modo a tutelar os interesses tutelados naquele preceito como quaisquer outros interesses que mereçam protecção constitucional. Quanto ao segundo, também a intervenção do Ministério Público é legitimada em todas as acções em causa, tendo, à excepção do previsto no art.º 68.º, n.º 1 al. c) CPTA, uma limitação quase inexistente, e que se encontra prevista no art.º 51.º ETAF, o que, não obstante de ser louvável, não deixará de ser criticável, na medida em que este fraco controlo do Ministério Público poder-lhe-á conferir uma legitimidade excessivamente lata.
Por último será possível concluir que a tentativa de criação de um sistema equilibrado, acaba por, indubitavelmente, garantir uma protecção de todos os interesses que possam ser lesados pela actuação da Administração, o que será sempre um factor extremamente positivo.
4 – Bibliografia
VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª. edição, Almedina, Coimbra, 2009.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «Manual de Processo Administrativo», Almedina, Coimbra, 2010.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos», 4ª. edição, Almedina, Coimbra, 2007.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «Sobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de Actos Administrativos», Almedina, 2004.
RUI CHANCERELLE DE MACHETE, “Sobre a Legitimidade dos Particulares nas Acções Administrativas Especiais”, in «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia» Volume II, Coimbra Editora, 2011.
SÉRVULO CORREIA, «Direito do Contencioso Administrativo», I vol., Lex, Lisboa, 2005.
DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», Volume II, Almedina, 2013.
“Collectivism is indifferent to all elements of our freedom and the enemy of some. But the real antithesis of a free manner of living, as we know it, is syndicalism. Indeed, syndicalism is not only destructive of freedom; it is destructive, also, of any kind of orderly existence. It rejects both the concentration of overwhelming power in the government (by means of which a collectivist society if always being rescued from the chaos it encourages), and it rejects the wide dispersion of power which is the basis of freedom. (…) The great concentrations of power in a syndicalist society are the sellers of labour organized in functional monopoly associations. (…) In the first place, labour monopolies have shown themselves more capable than enterprise monopolies of attaining really great power, economic, political and even military. Their appetite for power is insatiable and, producing nothing, they encounter none of the productional diseconomies of undue size. Once grown large, they are exceedingly difficult to dissipate and impossible to control. Appearing to spring from the lawful exercise of the right of voluntary association (though as monopolistic associations they are really a denial of that right), they win legal immunities and they enjoy popular support however scandalous their activity.” 1
Foi aprovada pela maioria parlamentar (PSD e CDS-PP), no final da sessão legislativa, a 29 de Julho, uma proposta de lei que procedeu à alteração do período de trabalho dos funcionários públicos para 40 horas semanais, sendo considerada, por alguns, como mais uma etapa no caminho de convergência entre o sector público e o privado que tem vindo a ser percorrido pelo actual Governo.
De acordo com o site da Assembleia da República, o diploma foi promulgado a 22 de Agosto pelo Presidente da República e seguiu para publicação em Diário da República, a 29 de Agosto, data que precede imediatamente o início da contagem do prazo para a sua entrada em vigor, 30 dias depois.
Apesar de ter sido aprovado em votação final global com votos da maioria PSD/CDS-PP, esta proposta de lei teve contra ela toda a oposição, certamente expectante que Cavaco Silva vetasse a iniciativa do Governo ou a enviasse para o Tribunal Constitucional para que este se pronunciasse em sede de fiscalização preventiva, o que não chegou a acontecer no prazo de 8 dias de que o Presidente da República dispõe para o efeito.
Perante este cenário, o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) anunciou, a 2 de Setembro, a apresentação de uma providência cautelar contra o aumento do horário de trabalho de 35h para 40h semanais na função pública, convicto quanto à manifesta inconstitucionalidade desta alteração.
Em comunicado, o STI refere que, entre outros motivos, pretende "tentar impedir a entrada em vigor desta lei", por estar convicto da sua inconstitucionalidade devido a uma "violação clara" da alínea d) do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa, que indica que “todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito (...) ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas". Está também em causa a redução dos salários em 13% através do aumento da carga horária e de um não aumento salarial (uma diminuição da remuneração horária, no fundo), que o presidente do STI, Paulo Ralho, considera inaceitável.
A providência cautelar sub judice deu entrada no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, no dia seguinte à emissão do comunicado pelo STI, a 3 de Setembro, pelas 15:00.
Dia 23 de Setembro, o STI foi notificado da aceitação da providência que requereu junto do TAC de Lisboa, tendo esta um efeito de suspensão imediata (vide artigo 128º/1 CPTA) relativo ao alargamento do expediente da função pública, até pronúncia definitiva do TC sobre a matéria. A partir dessa data, o Ministério das Finanças dispunha de 10 dias para rebater os argumentos do STI, apesar de, até lá, os cerca de 9.000 sócios dos sindicatos ficarem imunes ao novo regime. Todavia, o Governo tem à sua disposição um instrumento a que normalmente recorre para evitar que os efeitos da lei fiquem suspensos: a resolução fundamentada de interesse público, que, como referimos, tem a capacidade de anular o efeito suspensivo da providência cautelar até que o juiz profira uma sentença.
A 26 de Setembro, o Ministério das Finanças invocou o interesse público para eliminar o efeito suspensivo da providência cautelar requerida pelo STI, como era expectável, tendo sido os argumentos aceites pelo TAC de Lisboa. O STI prepara, no presente momento, a contestação.
Esta é a realidade fáctica. Cumpre agora analisá-la à luz daquilo que é o regime vigente em sede de contencioso administrativo, nomeadamente no que diz respeito ao âmbito de jurisdição dos Tribunais Administrativos.
Os tribunais administrativos, as entidades onde são apresentadas as providências cautelares, servem, inter alia, o propósito de verificar se os actos que se encontram hierarquicamente abaixo das leis (actos e regulamentos administrativos) estão em conformidade com elas. Apenas o Tribunal Constitucional tem competência para pôr em causa uma lei aprovada no Parlamento.
No caso que agora nos ocupa, não havendo pronúncia do Tribunal Constitucional relativa à putativa inconstitucionalidade das normas do diploma, parece-nos que o requerimento de uma providência cautelar por parte do STI, que tem como efeito a interrupção do processo, para querer suspender a aplicação de uma lei e cujo objectivo último é a anulação do efeito dessa mesma lei consubstancia uma lamentável forma de causar embaraço ao Executivo. Desacertada parece-nos ainda a aceitação desta mesma providência por parte do TAC de Lisboa, uma vez que os Tribunais Administrativos não têm jurisdição para suspender leis (vide artigo 4/2ª) ETAF) nem para as anular. Apenas o poderão fazer se as mesmas contiverem, de modo dissimulado, actos ou regulamentos administrativos, como atrás referimos, o que não é aqui, evidentemente, o caso. Não é despiciente, a propósito, relembrar que os órgãos e agentes da Administração Pública só podem agir no exercício das suas funções com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.
Perfilhamos, portanto, a posição a este respeito aduzida, na SIC N, pelo Dr. Tiago Duarte, Professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que considera que, pelos motivos assinalados supra, o TAC de Lisboa tinha motivos para rejeição liminar da providência, nos termos do artigo 116/2 d) do CPTA.
Notamos ainda que esta situação, além de lamentável, acaba por se revelar embaraçosa para o próprio Tribunal Administrativo, pois entendemos que o motivo para assim ter procedido terá resultado, em larga medida, da pressão e do poder detido pelos sindicatos, que têm, por definição, como único fito os seus interesses e que acabam por infligir à restante comunidade os prejuízos decorrentes da sua acção. Ora, o sucumbir de um tribunal, um órgão de soberania com competência para a administração da justiça, a métodos suasivos de uma associação sindical, ao arrepio da sua independência, gizada no artigo 203º CRP e, ademais, conquistada a muito custo na “fase do crisma e da confirmação”, na terminologia do Professor Vasco Pereira da Silva, bem como da sua subordinação à lei, afigura-se-nos consubstanciar uma aura de promiscuidade.
A este propósito, parecem-nos insignes os seguintes trechos, que passamos a citar:
“Public policy concerning labor unions has, in little more than a century, moved from one extreme to the other. From a state in which little the unions could do was legal if they were not prohibited altogether, we have now reached a state where they have become uniquely privileged institutions to which the general rules of law do not apply. They have become the only important instance in which governments signally fail in their prime - function the prevention of coercion and violence. (…) Everywhere the legalization of unions was interpreted as a legalization of their main purpose and as recognition of their right to do whatever seemed necessary to achieve this purpose -namely, monopoly. More and more they came to be treated not as a group which was pursuing a legitimate selfish aim and which, like every other interest, must be kept in check by, competing interests possessed of equal rights, but as a group whose aim - the exhaustive and comprehensive organization of all labor - must be supported for the good of the public. (…) In particular, because striking has been accepted as a legitimate weapon of unions, it has come to be believed that they must be allowed to do whatever seems necessary to make a strike successful. In general, the legalization of unions has come to mean that whatever methods they regard as indispensable for their purposes are also to be treated as legal. (…) Though it may be impossible to protect the individual against all union coercion so long as general opinion regards it as legitimate, most students of the subject agree that comparatively few and, as they may seem at first, minor changes in law and jurisdiction would suffice to produce far-reaching and probably decisive changes in the existing situation. The mere withdrawal of the special privileges either explicitly granted to the unions or arrogated by them with the toleration of the courts would seem enough to deprive them of the more serious coercive powers which they now exercise and to channel their legitimate selfish interests so that they would be socially beneficial.” 2
Cabe-nos também acrescentar um último, mas não menos importante, apontamento, este relativo à actuação dos magistrados. Os juízes encontram-se sujeitos ao princípio da imparcialidade, um princípio fundamental e norteador de toda a actuação administrativa. Parece-nos que a sua actuação in casu colide directamente com este princípio. É de apontar, então, a falta de imparcialidade dos juízes que, incrivelmente, protagonizam um choque de competências/jurisdições impróprio num Estado de Direito que se quer saudável.
Os factualismos circundantes do caso levam a crer que a aceitação da providência parece motivada por questões políticas e que, atento o basilar princípio da separação de poderes, a situação assim criada representa não só uma gritante intromissão de um poder/função na esfera de competência de outro, como também contribui para uma verdadeira judicialização do poder
1 - Michael Oakeshott, "The political economy of freedom", in Rationalism in Politics and other essays, Indianapolis, Liberty Fund, 1991, p. 401.
2 - Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, Chicago, The University of Chicago Press, 1978, pp. 267-278.
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