Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Blog de Contencioso Administrativo



Domingo, 08.12.13

A Eficácia Objectiva e Subjectiva da Sentença de Anulação no Contencioso Administrativo – o problema da tutela dos “terceiros”

A Eficácia Objectiva e Subjectiva da Sentença de Anulação no Contencioso Administrativo – o problema da tutela dos “terceiros”

 

 

 

Nota Introdutória:

                          i. As linhas que se seguem têm um objecto circunscrito, sob pena de se prolongarem em termos aqui intoleráveis: descortinar qual a extensão dos efeitos produzidos pela sentença de anulação proferida no âmbito do contencioso administrativo. Tal significará, destarte, delimitar quais os efeitos que produz e perante quem, em concreto.

                        ii. Tenham-se, desta forma, alguns pontos por assentes: a realidade de um Contencioso existente no âmbito de uma Administração de infra-estruturas[1], modelo típico do Estado Pós-social, onde necessariamente se ultrapassou o velhinho paradigma das relações jurídico-administrativas (puramente) bilaterais, aceitando-se pacificamente que a maior parte dos actos definidores de situações jurídicas particulares emitidos pela administração, embora com um destinatário directo e formal, acabam por produzir efeitos na esfera de terceiros[2], podendo até discutir-se, desde logo epistemologicamente, se será de aceitar a sua terceirização ou, ao invés, se impera afirmar – e sem medos – que estes são efectivamente partes numa relação jurídica que se configura agora multipolar, multilateral ou poligonal[3]; por outro lado, Contencioso esse que a Reforma de 2002-2004 logrou revolucionar, alterando o seu centro gravitacional, antes tido como um “contencioso feito ao acto”, e agora vertido num contencioso cuja finalidade primária é a tutela das posições activas subjectivas, maximus direitos, dos particulares.

                      iii. Uma jurisdicional tutela efectiva – tal como a que decorre do imperativo constitucional estabelecido pelos arts. 20.º e 268.º/4 CRP –, no âmbito de um contencioso predominantemente subjectivista, que haverá de garantir ao particular directamente lesado pela emissão de um acto administrativo a (re)afirmação da posição de vantagem que ilegalmente lhe fora subtraída por aquele acto. Decorrentemente, a sentença anulatória haverá de produzir efeitos também, e no mínimo, perante aqueloutros particulares titulares de interesses ou direitos conflituantes com os do autor.

                      iv. Assim, e de modo a garantir que a tutela concedida é materialmente efectiva, cumprirá aqui determinar a extensão objectiva e subjectiva dos efeitos produzidos pela sentença anulatória, sendo por demais óbvio que razões de praticabilidade obstam a que a conformação final da causa possa obter, num sem número de situações, uma transversalidade definitória absoluta.

 

 

Do objectivismo ao subjectivismo: a tutela dos terceiros e a extensão do Caso Julgado

                    i. Em tempos ainda precedentes da Reforma que revolucionaria o contencioso no início do século XXI, Freitas do Amaral afirmava que a finalidade última do então existente recurso contencioso de anulação era «a protecção dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos particulares, bem como a defesa da legalidade na Administração»[4]. Dizia-o, contudo, não a respeito do objecto do processo, mas antes a propósito do dever de execução de sentenças ou da possibilidade de a Administração permanecer inerte perante a sua condenação em juízo[5].

                  ii. A distinção entre o efeito anulatório e o efeito executório da sentença de anulação, sentença constitutiva emitida por um verdadeiro tribunal, então feita pela doutrina, encerrava em si variadíssimas dificuldades, desde logo no que se reportava à problemática da protecção dos terceiros, sobretudo quanto aos actos consequentes[6]. Tal não perderia validade ainda que se aceitasse pacificamente que a nulidade estatuída por via da sentença de anulação apenas atendia ao acto, desconsiderando a relação jurídica subjacente ao concreto objecto processual – rectius, o acto impugnado.

  1.                 iii.  Ainda no âmbito de um contencioso dirigido ao acto, fazia-se a destrinça entre as relações directas e indirectas dos terceiros com o acto impugnado, resolvendo-se o problema, quanto aos primeiros, por via do recurso às regras gerais do litisconsórcio necessário e, alegando-se, quanto aos segundos, a inoperatividade do regime da nulidade dos actos consequentes, nos termos, já de si atribulados, do disposto no art. 133.º/2, i) CPA.

                iv. Pretendendo-se saber quais os concretos efeitos do caso julgado, Freitas do Amaral retomava o entendimento que então perfilhava acerca da finalidade última do Contencioso Administrativo para defender que os concretos efeitos da sentença anulatória dependeriam do motivo que fundava a impugnação do acto: sendo esta fundada em motivos subjectivos, o caso julgado limitar-se-ía a produzir efeitos inter partes; ao invés, a anulação produziria efeitos erga omnes na circunstância de se fundar em razões estritamente objectivistas[7]. Ainda assim, os terceiros contra-interessados, potencialmente prejudicados pela sentença anulatória, que não houvessem sido chamados ao recurso contencioso de anulação, poderiam sempre obstar aos prejuízos decorrentes da sentença[8].

                  v. Esta visão objectivista de um contencioso administrativo que apenas secundariamente tutela posições jurídicas de particulares quer-se – e tem-se – hoje ultrapassada. A lesão de posições jurídicas dos particulares, antes tida enquanto mera condição de acesso à justiça, era de há muito assumida pelos defensores das teses subjectivistas enquanto efectiva condição de procedência da acção. Tal determinava que os terceiros deveriam necessariamente intervir na acção, circunscrevendo-se os efeitos do caso julgado aos sujeitos presentes no processo. Processo esse que visava a obtenção de uma verdadeira tutela jurisdicional efectiva dos particulares, que deveriam assumir a verdadeira natureza de partes em defesa de posições jurídicas substantivas, numa relação jurídica processual, devendo rejeitar-se a ideia de que não passavam de meros defensores da legalidade objectiva. No mesmo sentido, a Administração deveria estar presente em juízo na qualidade de parte demandada, e não enquanto Autoridade recorrida[9].

                vi. A superação do modelo objectivista, tão profundamente fundado na ideia de que “julgar a Administração é ainda administrar”, implicou a aproximação aos ditames naturais de um processo judicial, o que fica claro se se atender aos pressupostos processuais e à caracterização do objecto do processo, que deixou de ser vertido ao acto, para passar a ser um processo onde o particular sustenta uma pretensão de eliminação de um acto – o pedido imediato –, com vista a garantir a tutela de uma legítima posição substantiva de vantagem que lhe fora subtraída – o pedido mediato. A causa de pedir, também ela tradicionalmente reconduzível, num processo de partes, ao objecto processual, deixa de ser configurada enquanto ilegalidade absoluta ou abstracta, para passar a ser vista enquanto ilegalidade relativa, imperando a existência de uma conexão de ilegalidade entre o desvalor jurídico do acto e a lesão de um direito subjectivo[10].

              vii. Nesta lógica, o pretenso dever de execução da sentença perde autonomia e protagonismo, sendo consumida pelos efeitos daquela decorrentes: (a) o efeito anulatório; (b) o efeito repristinatório, que decorre da retroactividade da anulação e encerra um comando ordenatório de actuação e reconstituição da situação devida que onera a Administração; (c) o efeito conformativo, que impele a Administração a evitar a repetição do vício. Também nesta medida, a extensão subjectiva dos efeitos produzidos pela sentença abarcaria apenas os sujeitos presentes em juízo, como seria de prever.

            viii. Esta eficácia inter partes do caso julgado, num processo com pendor subjectivista, reconduz-nos a uma situação de complicada definição no que toca à tutela dos terceiros[11], sobretudo daqueles que não figuram entre os intervenientes processuais. Isto porque, como atrás se deixou claro, proliferam situações em que os actos administrativos são emitidos no seio de relações poligonais.

 

 

Muitas dúvidas e algumas soluções:

                          i. No processo civil, a regra da eficácia inter partes remonta ao direito romano, e afigura-se simples de compreender: só as partes que defenderam os seus direitos no processo podem ser vinculadas pela sentença. Todavia, o princípio da irrelevância do caso julgado em relação a terceiros nunca pôde reclamar plena aplicação[12].

                        ii. Tentando descortinar qual a extensão subjectiva dos efeitos produzidos por uma sentença constitutiva, a clássica doutrina civilista distinguia os “terceiros juridicamente indiferentes” dos “terceiros juridicamente interessados”[13]. Aqueles, ainda que sujeitos a um prejuízo de facto, não viam ser-lhes infligidos quaisquer prejuízos jurídicos. Já os segundos, repartidos em dois grupos, consoante a conexão das relações jurídicas: por um lado, os terceiros em posição jurídica independente e incompatível, a quem não poderá ser oposto o caso julgado, dada a incompatibilidade real entre as pretensões e a sua fonte em titulo jurídico diverso; por outro, os terceiros em relação conexa e compatível, que poderiam ser paralela (pretensões análogas e autónomas, o que impedia a extensão do caso julgado, dada a autonomia das relações jurídicas) e concorrentes (perante a mesma pretensão, o que exigia a produção de efeitos do caso julgado em relação a todos) ou prejudiciais (onde a relação prejudicial integraria o Tatbestand da dependente, onde se justificaria a intervenção processual através da assistência).

                      iii. A transposição destas concepções subjectivistas da eficácia inter partes para o domínio do contencioso da administração não é pacífica. Nomeadamente, não o é pelas soluções que não logra alcançar[14]. Não o era, antes da Reforma, pelo facto de se estar num processo que tinha por objecto o acto, e cujo efeito se limitava porventura à anulação desse acto.

                      iv. Havendo quem negue que os actos com eficácia plurisubjectiva colocam em causa a aplicabilidade das normas com pendor subjectivista decorrentes do processo civil[15], impera a delimitação de um critério que sustente a sua aplicabilidade no nosso contencioso, à luz da distinção intensidade/extensão operada pela clássica escola civilista.

                        v. A nosso ver, e à luz de um contencioso de partes, caberá a prévia afirmação de que, perante um acto capaz de ser facto constitutivo de vários feixes de relações jurídicas, a divisibilidade dos efeitos produzidos haverá de ser encontrada no seio dessa diversidade de relações constituídos por via do acto, e não à luz do próprio acto ou dos vícios de que padeça. Aí, haverá que depender os nexos conexionais entre elas existentes. De tal modo que a complexidade da conexão a estabelecer – i.e., maximus, dos efeitos perante terceiros – dependerá da complexidade da relação material controvertida, ou, se quisermos, do feixe de relações jurídicas criadas pela emissão do acto, e não o inverso.

                      vi. Destarte, e porque não cabe aqui deixar especiais considerações acerca dos efeitos produzidos pela sentença anulatória na esfera do particular que intenta a acção anulatória em juízo, centremo-nos, quanto a esses, apenas no essencial: a evidente eliminação do acto impugnado. O que nos poderia trazer uma nova questão: sendo o acto eliminado, tal eliminação produziria automaticamente efeitos perante particulares que não apenas o Autor, ao que seria de concluir pela negação de uma eficácia meramente inter partes da sentença anulatória. Dizemos poderia porque, na prática, não se levanta o problema: o regime dos contra-interessados, tal como desenhado no nosso CPTA, está desenhado de modo a motivar a ilegitimidade das partes em caso de não serem chamados.

                    vii. Os terceiros sujeitos de relações poligonais encontram-se, pois, em situações jurídicas de diversas espécies, podendo os seus direitos ou interesses tutelados ser conexos, diferentes ou até antagónicos aos do autor. A impossibilidade de facto de se categorizar os seus interesses ou direitos obsta, logicamente, a que se defenda um entendimento que perfilhe a produção uniforme, unificada ou categorial, dos efeitos perante eles produzidos pela sentença de anulação. Da mesma forma, impõe-se-nos questionar se este dispersar de posições substantivas é conciliável com a concessão de uma tutela efectiva àquele que surge no processo enquanto parte activa, i.e., o autor.

                  viii. Estes seriam problemas que, à partida, não surgiriam num contencioso objectivista[16], centrado na reposição da legalidade objectiva e que tenderia a desconsiderar a violação de direitos subjectivos, fossem eles do recorrente ou de terceiro.

                      ix. Já num contencioso cuja finalidade primária se centra na efectiva tutela de posições jurídicas substantivas, a busca de um critério uniforme que ultrapasse a barreira prática da diversidade da relação poligonal não se afigura de fácil solução. Desde logo, o ponto de partida da operacionalidade jurídica não se configura claro: recusando-se de antemão o crivo da identidade do acto, poder-se-ia adoptar uma posição já há muito propugnada pela doutrina italiana, que considerava contra-interessados todos os sujeitos que retirassem vantagens do acto, independentemente de naquele se encontrarem ou não identificados. Tal não mais significaria do que operar uma divisão estanque entre os que, por um lado, retiravam vantagens do acto e, do outro, aqueles que por ele seriam prejudicados. Contudo, como atrás se disse, a complexidade da relação poligonal determina a inoperatividade prática deste critério: considerar simplesmente as vantagens de todos os terceiros originaria, potencialmente, um universo de contra-interessados amplíssimo, o que redundaria na não concessão de uma tutela jurisdicional efectiva ao recorrente. Ademais, a isto se junta a criticável e já comentada formação de categorias estanques de terceiros, desconsiderando-se a sua efectiva e fáctica posição digna de tutela.

                        x. Alternativa que se colocaria diante de nós passaria por considerar os efeitos da sentença judicial enquanto ponto de partida, recusando-se a atribuição daquele lugar ao acto. No entanto, e independentemente do mérito de contrariar uma tendência actocêntrica, tal critério conduzir-nos-ia provavelmente a uma injustiça relativa, na medida em que situações materiais idênticas acabariam por receber tutelas jurisdicionais distintas, consoante o tipo de acções e os respectivos efeitos das sentenças, o que é sobremaneira condenável. 

                      xi. Assim, a almejada coincidência entre o objecto do processo e a relação material controvertida, haverá de implicar uma reconfiguração do próprio objecto processual, passando este a incluir não tão só os direitos subjectivos do recorrente como também os do terceiro. O que, conexamente, haverá de implicar o reconhecimento de uma tutela jurisdicional efectiva também àqueloutros, titulares de posições jurídicas próprias e sujeitos com poderes de intervenção e participação processuais autónomos e distintos. Parece claro, nesta medida, que apenas segundo um critério que coloque o crivo nos efeitos da sentença, e não no acto impugnado, será sustentável a individualização da posição dos terceiros e, mais do que isso, a correspectiva efectividade das suas posições substantivas.

                    xii. No contencioso objectivista português, e ainda que se tenha por assente a subsistência de vozes que consideram contra-interessados os titulares de um interesse directo na manutenção do acto[17], a própria simples consideração da existência de titulares de interesses contrapostos aos do Autor – no que se afirmava serem pretensões sinónimas às da Autoridade recorrida, a Administração – era de si paradoxal. Afinal, a consideração de pretensões substantivas individualizáveis e merecedoras de tutela em face dos efeitos produzidos por uma sentença anulatória era a aceitação tácita de um marco afirmadamente subjectivista.

                  xiii. Ao invés, parece hoje claro que o entendimento do conceito de contra-interessados na nossa jurisprudência não se afigura, de todo, restritivo[18]. Ainda que assim seja, impera determinar os círculos de terceiros de acordo com relações de intensidade e extensão dos efeitos do caso julgado.

                  xiv. Como atrás se disse o acto administrativo que desencadeia uma relação jurídica poligonal opera numa realidade em que os interesses dos particulares podem relacionar-se, entre si, de diversas maneiras. Se se partisse do acto, os terceiros lesados surgiriam aparentemente divididos em dois grupos, separados pela barreira da vontade na manutenção ou na eliminação do acto. Todavia, a eventual anulação do acto, motivada pela acção proposta por autor determinado com fundamentos determinados, alteraria naturalmente a dinâmica dos interesses tuteláveis desses terceiros. Esta nova reordenação das situações jurídicas dos interessados, de acordo com o destino resultante da sentença anulatória, alcançável através de um juízo de prognose, parece pois aquela que melhor atenta às dinâmicas próprias de uma relação jurídica poligonal[19], no que se aproxima do assumir de um critério há muito defendido por boa parte da doutrina civilista.

                    xv. No contencioso, é vulgar a consideração de que os contra-interessados deverão apresentar-se como litisconsortes necessários, paritariamente com a Administração, em juízo. Na óptica da lógica civilista, a justificação do litisconsórcio necessário impera nos casos de conexão concorrente, nos quais a incindibilidade das pretensões exigiria a presença de uma pluralidade de sujeitos em juízo de forma a que fosse possível a obtenção do efeito útil na conformação do litígio, sob pena de poderem posteriormente, inclusivamente, proferidas decisões conflituantes com a desejável uniformidade da decisão jurisdicional. Naturalmente, o seu campo por excelência concentrar-se-ia exactamente, ainda que não de forma exclusiva, no domínio das acções constitutivas, implicando a incindibilidade de pretensões a formação de uma única e indivisível parte no processo judicial.   

                  xvi. A transposição desta ideia para o domínio do processo administrativo encontra, desde logo, um entrave: a estrutura material de uma relação poligonal é de si diversa, e mais complexa, do que a de uma relação civilística onde, apesar da conexidade entre pretensões, existe apenas uma pluralidade de sujeitos activos ou passivos, que entre si apresentam pretensões de idêntica ordem, fundadas, em principio, numa mesma relação material controvertida. Ora, como partimos do pressuposto que os contra-interessados não vêm os seus interesses limitados à manutenção do acto, a posição que ele ocupará tenderá a ser diversa daqueloutra assumida pela Administração. Não existindo esta unidade de posições em relação à administração, e ainda que subsista o elemento comum do interesse na manutenção do acto, não parece pois possível de afirmar a existência de uma única relação material controvertida, sendo, outrossim, de defender a diferenciação das situações jurídicas em apreço e a sua origem diferenciada e diferenciadora.

                xvii.Destarte, cumpre afirmar que a participação processual dos contra-interessados não encontra paralelo na figura do litisconsórcio necessário, como tantas vezes defendeu a jurisprudência nacional, mas antes na coligação necessária.

              xviii. Na coligação necessária, o autor, para lá da impugnação do acto, procura encontrar na sentença um instrumento de protecção face a uma pluralidade de questões de facto derivadas da situação jurídica material que transpôs para o processo. Numa lógica decorrente do princípio do dispositivo, os poderes de cognição e decisão do tribunal encontrar-se-ão limitados à extensão do objecto configurado pelo autor. Assim, o terceiro será contra-interessado se o seu direito for questionado pelo autor, o que haverá de acontecer quando o concreto pedido por aquele conformado implicar a negação da posição substantiva do terceiro. Por outras palavras, importará pois colocar o enfoque na potencial desvantagem, ou diminuição da vantagem, gerada na esfera do terceiro pela anulação do acto, e não nas concretas vantagens que aquele terceiro retirava anteriormente da existência do acto.

                  xix. Questão diversa será a de determinar qual o grau de esforço concretamente exigível ao recorrente na identificação dos contra-interessados. Diversa, dizemos, mas não menos relevante, ainda mais quando a falta de demanda dos contra-interessados implica a ilegitimidade das partes, inquinando, destarte, o conhecimento da matéria de fundo pelo juiz administrativo. No mesmo sentido, é hoje de rejeitar[20] que a participação no procedimento administrativo conducente à emissão do acto impugnado seja hoje de considerar como condição de tutela das posições dos terceiros ou, em especial, para a sua consideração enquanto contra-interessados[21].

                    xx. Em último termo, caberá então inquirir o que fazer em relação aos terceiros que não sejam titulares de direitos questionados directamente pelo autor no objecto do processo (dado que estes, como atrás se disse, deverão estar em juízo em coligação necessária com a administração). Sinteticamente, diga-se em relação a estes que a sua intervenção no processo tenderá a ocorrer, sobretudo, por via de intervenção principal (se titulares de interesses paralelos, idênticos ou diferentes, em relação ao recorrente) ou de oposição (no caso de titularidade de direito próprio incompatível com a pretensão alegada pelo autor, mas não incluído no pedido por ele formulado). Também aqui, porém, haverá a considerar a potencial multiplicidade de posições substantivas cuja titularidade fundamenta a sua participação no processo.

                  xxi. Para terminar, e em suma, diga-se que nos parece esta a única posição cuja assunção não conflitua com um processo que se quer na disponibilidade das partes, e com o abandono daqueloutro caracterizados pelos complexos da linha objectivista.

 

 

 

 

                                                                                                                       

 

 

 

 

 

 



[1] Sobre a distinção entre a Administração Agressiva do Estado Liberal, a Administração Prestadora do Estado Social e a Administração de Infra-estruturas do Estado Pós-Social, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Reimpressão, Almedina, 2003, p. 11 e ss.

[2] A propósito, e de forma esclarecedora: «Em face da Administração não encontramos apenas um particular – ou vários particulares dotados de interesses idênticos – mas vários sujeitos defendendo interesses diferentes ou mesmo antagónicos», cf. MAFALDA CARMONA, “ Relações Jurídicas Poligonais, Participação de Terceiros e Caso Julgado na Anulação de Actos Administrativos”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Vol. II, Coimbra Editora, 2011, pp 695-757 (700).

[3] Sobre a figura, de espectro mais amplo do que o circunscrito objecto do presente estudo, vide, por todos, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca…, pp. 130 e ss., 167 e ss., 273 e ss. e 451 e ss.; RUI CHANCERELE DE MACHETE, “ Algumas reflexões sobre as relações jurídicas poligonais, a regulação e o objecto do processo administrativo”, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, II, Almedina, 2012, pp. 575-589; e DINAMENE DE FREITAS, As Relações Administrativas Multilaterais – Reflexos da Figura no Novo Regime do Contencioso Administrativo, Relatório de Mestrado do Seminário de Direito Administrativo, em especial, pp. 7-34.

[4] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Coimbra, 1997, passim.

[5] Bis, ibidem, p. 39.

[6] Bis, ibidem, pp. 85 e ss.

[7] A. cit., op. cit. passim., ainda que sem referenciar concretamente esta diferenciação entre motivações objectivistas e subjectivistas que fundamentavam o recurso de anulação, centrando a temática em torno da querela diferenciadora entre o respeito ao caso julgado e o dever de execução da sentença que impendia sobre a Administração, aparentemente autónomos. 

[8] A posição então assumida entre a diferenciação dos efeitos produzidos pela sentença foi perfilhada posteriormente e segundo acepções diversas por vários AA.. De forma abreviada, atente-se aos seguintes traços conformadores: (a) a consideração da execução enquanto acção autónoma; (b) a distinção dos efeitos da anulação, erga omnes quanto á eliminação retroactiva do acto, inter partes quanto à reconstituição da situação actual hipotética.

[9] VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um Contencioso…, p. 131.

[10] Bis, Ibidem, p. 193 e ss.

[11] Numa óptica, aliás, em nada exclusiva do contencioso administrativo, e há muito discutida no processo civil. Sumariamente, diga-se, o entendimento dominante no Processo civil aponta para a inclusão da sentença constitutiva no objecto da relação jurídica subjacente [cf., MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, in BMJ, 1985, n.º 325 pp. 49 e ss (51)].

[12] JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in BFDUC, 1940-1941, pp. 211-212: “ A causa reside na conexão e interdependência das relações jurídicas (…) [que] não vivem isoladas, em compartimentos estanques, coexistem umas com as outras e esta coexistência dá lugar a reacções múltiplas de cruzamento e interferência”

[13] A. cit., op. cit., p. 206 e ss..

[14] A este propósito, atente-se à destrinça operada por JOÃO DE CASTRO MENDES [Limites objectivos do Caso em Processo Civil, s/l, s/d, 1965] entre a intensidade e a extensão do Caso Julgado: a primeira, reportável aos efeitos da sentença em si considerada, a segunda referente à produção de efeitos não compreendidos ab initio na sentença, ocorrendo quando da indiscutibilidade de certa proposição se conclui pela subsistência ou insubsistência de uma outra afirmação, com conteúdo diverso.

[15] MAFALDA CARMONA, op. cit., p. 722. 

[16] Exemplo paradigmático o do contencioso francês que não impõe ao recorrente a obrigação de chamar ao processo os terceiros interessados, produzindo naturalmente o caso julgado efeitos erga omnes. Todavia, mesmo neste ordenamento, os terceiros não vêm a sua protecção totalmente descurada – numa solução que, para lá de mitigadora do objectivismo, nos parece incongruente: por um lado, o recorrente não tem o dever de demandar os contra-interessados, mas depois vê-se impossibilitado de contra aqueles fazer opor os efeitos da sentença anulatória; por outro, a Administração respeita os ditames da anulação do acto e, no limite, poderá ter de continuar a actuar como se o acto nunca houvesse sido anulado. A intervenção de terceiros opera, naquele ordenamento, através da tierce opposition, ou oposição de terceiro, amplamente admitido pela jurisprudência dos tribunais superiores daquele Estado desde o final do século XIX.

[17] Por todos, vide DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, T. IV, p. 182.

[18] Na anulação de actos de indeferimento, a jurisprudência tem-se mostrado contrária ao entendimento de que o prejuízo não derivaria da sentença, mas antes do acto posterior [Ac. STA de 3.03.83, P. 17702, 1123 e ss. (1126)]. Em conformidade com a sentença, natural seria que o acto posterior prejudicasse os terceiros, sob pena de desrespeitar a definição operada por aquela. Também nos casos ligados às chamadas relações de vizinhança, tem a jurisprudência entendido que o lesado pelo acto se encontra adstrito a demandar os terceiros vizinhos enquanto contra-interessados, logo no processo de anulação [Acs. STA de 20.05. 96., P. 40042, e de 20.03.97, P. 28277.

[19] MAFALDA CARMONA, op. cit., p. 749

[20]Em sentido diverso,  Cf. , Ac. STA 09.10.95, pp. 7903 e ss.

[21] A participação no procedimento não pode fornecer mais do que uma mera orientação com vista à descoberta dos contra-interessados. Isto poderá levar, em último termo, a problemas na identificação daqueles. Daí que, quanto ao esforço exigível ao requerente para a identificação dos terceiros que devem estar presentes na qualidade de contra-interessados, se deva optar por um grau de razoabilidade aferível casuisticamente, por estar em causa o fim último de garantia da concessão de uma tutela jurisdicional efectiva.

Autoria e outros dados (tags, etc)

por CatarinaSantinha às 23:58


1 comentário

De tiagoantunes a 12.12.2013 às 18:07

Visto.

Comentar post




Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

Pesquisar no Blog  

calendário

Dezembro 2013

D S T Q Q S S
1234567
891011121314
15161718192021
22232425262728
293031